sexta-feira, 13 de dezembro
Home / Artigos / Controvérsia

Controvérsia

Visto que você está envolvido em controvérsia e que o seu amor pela verdade está unido a um entusiasmo natural de temperamento, um amigo me deixou apreensivo a seu respeito. Você está do lado mais forte, porque a verdade é poderosa e tem de prevalecer. Assim, mesmo uma pessoa de habilidades inferiores pode entrar na batalha confiante na vitória.

Por essa razão, não estou ansioso pelo acontecimento da batalha. Mas desejo que você seja mais do que vencedor e triunfe, não somente sobre o seu adversário, como também sobre você mesmo. Se você não pode ser vencido, pode ser ferido. A fim de preservá-lo de tais feridas, que lhe poderiam dar motivo de chorar por suas conquistas, quero presenteá-lo com algumas considerações, que, devidamente atendidas, lhe servirão de cota de malha, um tipo de armadura do qual você não precisará queixar-se, como o fez Davi em relação à armadura de Saul, a qual era incômoda e inútil. Você perceberá que esta cota de malha foi extraída do grande manual dado ao soldado cristão, a Palavra de Deus.

Estou certo de que você não espera qualquer desculpa por minha liberdade; por isso, não oferecerei nenhuma. Por amor ao método, reduzirei meu conselho a três assuntos: o seu adversário, o público e você mesmo.

Quanto ao seu oponente, desejo que, antes de começar a escrever contra ele e durante todo o tempo em que estiver preparando a sua resposta, você o confie, por meio da oração sincera, ao ensino e à bênção do Senhor. Esta atitude terá a tendência imediata de conciliar seu coração ao amor e à compaixão por seu adversário; e tal disposição exercerá boa influência sobre tudo o que você escrever.

Se você acha que seu adversário é um crente, embora esteja grandemente errado no assunto debatido entre vocês, as palavras de Davi a Joabe, a respeito de Absalão, lhe são bastante aplicáveis: “Tratai com brandura… por amor de mim” (2 Sm 18.5). O Senhor ama e tolera o seu oponente; portanto, você não deve menosprezá-lo ou tratá-lo com aspereza. O Senhor tolera igualmente a você e espera que demonstre ternura para com os outros, motivado pelo senso de perdão de que você mesmo tanto necessita.

Em breve, vocês se encontrarão no céu. Ali, ele lhe será mais querido do que o amigo mais íntimo que você tem agora neste mundo. Em seus pensamentos, antecipe aquele tempo. E, embora você julgue necessário opor-se aos erros dele, encare-o pessoalmente como um irmão, com quem você será feliz, em Cristo, para sempre. Mas, se você o considera uma pessoa não-convertida, em um estado de inimizade contra Deus e a graça dEle (esta é uma suposição que, sem boas evidências, você não deve se mostrar disposto a admitir), ele é mais um objeto de sua compaixão do que de sua ira.

Infelizmente, “ele não sabe o que está fazendo”. Mas você sabe quem o tornou diferente. Se Deus, em seu soberano prazer, assim o tivesse determinado, você poderia ser o que o seu adversário é agora; e ele, em seu lugar, estaria defendendo o evangelho. Por natureza, vocês eram igualmente cegos. Se você atentar a este fato, não censurará nem odiará o seu oponente, porque o Senhor se agradou em abrir os seus olhos e não os olhos dele.
De todas as pessoas que se envolvem em controvérsia, nós, que somos chamados calvinistas, estamos especialmente obrigados, por nossos princípios, a exercer gentileza e moderação. Se aqueles que diferem de nós têm capacidade de mudar a si mesmos, podem abrir seus próprios olhos e amolecer seus próprios corações, então, nós podemos, com menor incoerência, ser ofendidos pela obstinação deles. Contudo, se cremos no contrário disso, nosso dever é não contender, mas instruir, com mansidão, aqueles que se opõem, “na expectativa de que Deus lhes conceda… o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade” (2 Tm 2.25).

Se você escrever com o desejo de ser um instrumento de corrigir erros, é claro que terá cautela para não ser uma pedra de tropeço no caminho dos cegos, nem utilizar expressões que podem incendiar as paixões deles, confirmá-los em seus preconceitos e, por meio disso, tornar mais impraticável (do ponto de vista humano) o convencimento deles.

Por meio da página impressa, você apela ao público; e seus leitores podem ser classificados em três grupos. Primeiramente, aqueles que discordam de você em princípio. Sobre estes posso reportar-lhe o que já disse antes. Embora você tenha em vista, principalmente, um único indivíduo, há muitos com opinião idêntica à dele; portanto, a mesma argumentação poderá atingir uma só pessoa ou milhares.

Também haverá muitos que darão pouquíssima consideração ao cristianismo, bem como à idéia de pertencerem a um sistema religioso estabelecido, e que estão engajados na luta em favor daqueles sentimentos que são, no mínimo, repugnantes às boas opiniões que os homens naturalmente possuem a respeito de si mesmos. Estes são incompetentes para julgar doutrinas, mas podem formular uma opinião tolerável a respeito do espírito de um escritor. Eles sabem que mansidão, humildade e amor são as características do temperamento de um crente. E, embora tais leitores finjam considerar as doutrinas da graça como meras opiniões e especulações que, supondo fossem adotadas por eles, não teriam qualquer influência saudável sobre seu comportamento, eles sempre esperaram de nós, que professamos estes princípios, que tais disposições correspondam com os preceitos do evangelho. Eles discernem imediatamente quando nos afastamos de tal espírito, considerando isso um motivo para justificar o menosprezo deles para com os nossos argumentos.

A máxima das Escrituras: “A ira do homem não produz a justiça de Deus” (Tg 1.20) é confirmada pela observação diária. Se tornamos amargo o nosso zelo, por utilizarmos expressões de ira, injúria, zombaria, podemos pensar que estamos fazendo um serviço à causa da verdade, quando, na realidade, estamos apenas lhe trazendo descrédito.

As armas de nossa milícia, que sozinhas podem destruir as fortalezas do erro, não são carnais e sim espirituais; são argumentos extraídos corretamente das Escrituras, bem como da experiência, e reforçados por uma aplicação compassiva, capaz de convencer nossos leitores. Estes argumentos (quer convençamos os leitores, quer não) mostram que almejamos o bem da alma deles e estamos contendendo tão-somente por amor à verdade. Se pudermos convencê-los de que agimos com estes motivos, nosso objetivo está parcialmente alcançado. Eles se mostrarão mais dispostos a ponderar, com calma, aquilo que lhes oferecemos. E, se ainda discordarem de nossas opiniões, serão constrangidos a aprovar nossas intenções.

Você encontrará uma terceira classe de leitores, que, pensando como nós, aprovarão prontamente o que você dirá e, talvez, serão estabelecidos e firmados em seus pontos de vista sobre as doutrinas das Escrituras, por meio de uma elucidação clara e magistral do assunto. Você pode ser um instrumento para a edificação deles, se a lei da bondade, bem como a da verdade, regularem sua caneta, pois, de outro modo, você lhes causará danos.

Existe um princípio do “eu” que nos leva a desprezar todos aqueles que discordam de nós. E geralmente nos encontramos sob a influência deste princípio, quando pensamos estar apenas mostrando um zelo conveniente na causa do Senhor. Creio prontamente que os principais argumentos do arminianismo surgem do orgulho humano — e são nutridos por tal orgulho. Todavia, devo me alegrar se o contrário sempre foi verdadeiro. Também creio que aceitar o que é chamado de doutrinas calvinistas consiste em um sinal infalível de uma mentalidade humilde.

Tenho conhecido alguns arminianos — ou seja, pessoas que, por falta de mais iluminação, têm se mostrado receosas de abraçar as doutrinas da graça gratuita — que têm dado evidências de que seus corações estavam em profunda humildade diante do Senhor. E temo que haja calvinistas que, enquanto tomam como prova de sua humildade o fato de que estão dispostos a degradar, em palavras, a criatura e dar toda a glória da salvação ao Senhor, desconhecem o tipo de espírito que possuem.

Aquilo que nos faz ter confiança de que, em nós mesmos, somos comparativamente sábios ou bons, a ponto de tratar com desprezo aqueles que não subscrevem nossas doutrinas ou seguem o nosso grupo, é uma prova e um fruto do espírito de justiça própria. A justiça própria pode se alimentar de doutrinas, bem como de obras. Um homem pode ter o coração de um fariseu, enquanto a sua mente está repleta de conceitos ortodoxos sobre a indignidade da criatura e as riquezas da graça gratuita. Sim, eu poderia acrescentar: os melhores dos homens não estão completamente livres deste fermento. Por isso, eles estão propensos a se satisfazerem com apresentações que podem levar os nossos adversários ao ridículo e, por conseqüência, bajular as nossas opiniões superiores.
Controvérsias, em sua maioria, são administradas de modo a favorecer, e não a reprimir, esta disposição errada. Portanto, falando de modo geral, as controvérsias produzem pouquíssimo bem. Elas provocam aqueles aos quais deveriam convencer e envaidecem aqueles que elas deveriam edificar. Espero que seu empreendimento tenha o sabor de um espírito de humildade e seja um meio de promovê-la em outros.

Isto me leva, em último lugar, a considerar nosso interesse em seu atual empreendimento. Parece um serviço louvável defender a fé que uma vez foi entregue aos santos. Somos ordenados a batalhar diligentemente por esta fé e convencer os que se opõem. Se tais defesas foram convenientes e oportunas em tempos passados, parecem que elas também o são em nossos dias, quando erros abundam por todos os lados e cada verdade do evangelho é negada de modo direto ou apresentada de modo grotesco.

Além disso, encontramos poucos escritores de controvérsia que não têm sido claramente prejudicados por ela — ou por desenvolverem um senso de importância pessoal, ou por absorverem um espírito de contenção irada, ou por afastarem insensivelmente sua atenção das coisas que constituem o alimento e a sustentação imediata da vida de fé e gastarem seu tempo e forças em assuntos que, em sua maioria, são apenas de valor secundário. Isto nos mostra que, se o serviço é louvável, ele é também perigoso. Que benefício um homem pode ter em ganhar a sua causa, silenciar o adversário, se, ao mesmo tempo, ele perde aquele espírito de humildade e contrição que deleita o Senhor e conta com a promessa de sua presença?

Sem dúvida alguma, o seu alvo é bom, mas você tem necessidade de vigilância e oração, pois Satanás estará à sua mão direita para opor-se a você. Ele tentará destruir suas opiniões. E, embora você se levante em defesa da causa de Deus, ela pode tornar-se sua própria causa, se você não estiver olhando continuamente para o Senhor, a fim de ser guardado e alertado por Ele, naquelas disposições que são incoerentes com a verdadeira paz de espírito; isto certamente obstruirá a comunhão com Deus. Esteja alerta contra o permitir que alguma coisa pessoal entre no debate. Se você acha que foi injuriado, terá a oportunidade de mostrar que é um discípulo de Cristo, pois Ele, “quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças” (1 Pe 2.23). Este é o nosso padrão; por isso, temos de escrever e falar por Deus, “não pagando mal por mal ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo, pois para isto mesmo fostes chamados” (1 Pe 3.9).

A sabedoria que vem do alto não é somente pura, mas também pacífica e cordial. A falta destas qualidades, à semelhança da mosca morta em uma vasilha de ungüento, estragará o sabor e a eficácia de nossos labores. Se agirmos com espírito errado, traremos pouca glória para Deus, faremos pouco bem ao nosso próximo e não obteremos nem descanso nem honra para nós mesmos.

Se você puder se contentar com o expressar a sua opinião e, assim, conquistar o sorriso de seu oponente, isto será uma tarefa fácil. Mas espero que você tenha outro alvo mais nobre e que, estando sensível à solene importância das verdades do evangelho e à compaixão pelas almas dos homens, você preferirá ser um meio de remover preconceitos em uma única ocasião a obter os aplausos inúteis de milhares. Portanto, vá em frente, no nome e na força do Senhor dos Exércitos, falando a verdade em amor. E que o próprio Senhor dê em muitos corações um testemunho de que você é ensinado por Ele e favorecido com a unção do Espírito Santo.


Autor: John Newton

John Newton (Londres, 24 de Julho de 1725 — 21 de Dezembro de 1807) foi um clérigo Anglicano, ex traficante de escravos. Foi autor de muitos hinos incluindo Amazing Grace.

Ministério: Ministério Fiel

Ministério Fiel
Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

Veja Também

pregação expositiva

A idolatria à pregação expositiva e a falta de oração

Veja neste trecho do Episódio #023 do Ensino Fiel os perigos da frieza espiritual e idolatria a conceitos, como por exemplo, à pregação expositiva.