quarta-feira, 18 de dezembro
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Disciplina (não) é só para militares

Todo início de ano é a mesma coisa. Por alguma razão, passamos a esperar coisas novas e diferentes, ainda que não haja nenhum sinal direto de mudança. Reunimos essa energia, pensamos em alguns desejos e, na base do otimismo, acreditamos que tudo fluirá.

Para os cristãos, a resolução clássica é: “Este ano vou ler a Bíblia toda”. E é assim que Gênesis se torna o livro mais iniciado de todos os tempos e o menos concluído. Na primeira semana do ano, sentimo-nos empolgados e conseguimos caminhar na leitura. Na segunda semana, a vida começa a “voltar ao normal” e, assim, falhamos na leitura em alguns dias. Na terceira semana, já nos damos conta de que há um descompasso entre nossas expectativas e a realidade, e muitos de nós já desistem por ali mesmo.

“Eu não consigo ler a Bíblia e orar todos os dias”, já ouvi algumas vezes. “Eu sempre começo, mas não consigo manter a constância.”

Eu entendo. Disciplina não é exatamente nosso ponto forte.

Os militares e a disciplina

Talvez se fôssemos militares, a coisa seria diferente. Eles são disciplinados. Têm horários a cumprir, regras a obedecer, padrões a serem mantidos. Existe uma forma própria de arrumar a cama, alinhar o uniforme, cumprir as atividades demandadas. A fama é tão grande que colégios militares foram propostos como instrumentos para restaurar cenários de muita baderna, indisciplina e desordem. 

Se fôssemos militares, seria mais fácil — alguns podem pensar. Mas um militar não nasce assim. Ele é forjado.

Aqui, então, retomamos o debate sobre natureza e cultura. Assim como no tópico da procrastinação, na indisciplina também precisamos perceber que nosso problema é tanto cultural como natural. E trataremos primeiro da dimensão cultural, porque a natural nos levará a considerar o coração na sequência.

Uma cultura indisciplinada

Nem mesmo os militares ficam livres. Os mais antigos talvez se lembrem do personagem Recruta Zero — um militar preguiçoso e indisciplinado. Os quadrinhos do Recruta Zero foram criados no cenário norte-americano, mas caberiam bem em terras brasileiras.

Como já vimos, o Zé Carioca, a lei de Gérson e o jeitinho brasileiro dão o tom da cultura nacional. É claro que isso não representa a totalidade do Brasil — há muita gente trabalhadora e disciplinada em nosso país —, mas as caricaturas apenas exageram os traços reais.

Nesse contexto, preguiça e indisciplina andam juntas. Como privilegiamos o improviso no lugar do planejamento, e a inspiração no lugar da transpiração, somos mais propensos a depender do humor do momento e, assim, temos uma caminhada inconstante — em um dia, estamos no clima de ler um livro da Bíblia inteiro e, nas três semanas seguintes, estamos cansados e atarefados demais.

Sem perceber, passamos a ser escravos do humor do dia. Algumas vezes, justificamos a inércia com alguma aparência de piedade — “Eu não vou orar hoje porque não estou no clima; isso seria hipocrisia para com Deus” —, mas a realidade é que somos guiados por nossas emoções, permitindo que elas conduzam nossas vidas. Vivemos pelo “sentir”, e não pela fé.

A cultura global também nos encaminha nessa direção. Embora existam outros países cujo ethos é voltado para a vida organizada e disciplinada, o avanço da tecnologia nos estimula a abraçar a lei do menor esforço. 

Não me entenda mal; eu amo as facilidades tecnológicas e uso muitas delas — inclusive agora, ao escrever este capítulo. Mas, se é verdade que tempos difíceis criam homens fortes, enquanto tempos fáceis criam homens fracos, a comodidade da tecnologia contribuiu para nossa fraqueza em termos de disciplina. 

Pense no exemplo das compras. Embora comprar possa ter algo conectado ao prazer, a atividade de fazer compras no mercado, por exemplo, sempre esteve conectada a alguma dose de esforço e abnegação. Era necessário separar tempo, criar coragem, vencer o comodismo e seguir para essa tarefa entediante. Para muitos, ainda é assim que funciona. Mas, então, chegaram os canais digitais de compras — e tudo ficou rápido, fácil e indolor. Sites como a Amazon foram além e desenvolveram tecnologia para criar um botão chamado “comprar com um clique”, diminuindo até mesmo a “dificuldade” de clicar em mais de um botão para comprar. Por um lado, isso é maravilhoso. Em cinco minutos ou menos, você resolve o problema da falta de papel higiênico em casa sem precisar se vestir e encarar o trânsito e as filas. Por outro lado, o que isso fez conosco? Tornou-nos menos dispostos a suportar o desconforto e, no longo prazo, tem enfraquecido nossa vontade e sabotado a capacidade de esforço e disciplina para lidar com tarefas que pareçam entediantes ou difíceis.

Bem-vindo ao século 21, no qual toda a facilidade se transformou em armadilha. 

Um coração indisciplinado

Se a cultura nos estimula à indisciplina, nós só pegamos a isca porque há algo dentro de nós propenso a isso. Não precisamos exatamente das facilidades da tecnologia ou do jeitinho brasileiro para sermos convencidos de seguir o caminho do menor esforço. É possível que essas estruturas culturais existam porque primeiro, em nosso coração, a disposição para a indisciplina é a norma. Mas o que está envolvido nessa dinâmica?

Se você notou o padrão, perceberá que tudo começa com o orgulho. Nós buscamos ocupar o centro do mundo, de modo que tudo deve girar em torno de nós. Se estamos no centro, é nossa vontade, nosso conforto e bem-estar, nosso humor do momento e nossas expectativas que devem ser atendidos.

Não é possível, porém, ir muito longe com isso. Da raiz do orgulho, brota o apego aos apetites sensuais. A Escritura nos adverte, repetidas vezes, contra as “paixões” e, sob essa nomenclatura, encontram-se os vícios e apetites de uma alma faminta por prazeres fáceis.

A metáfora da comida é adequada. Eu amo o que é conhecido como fast-food. Gosto de pedir algo e receber rapidamente. Gosto dos condimentos, que realçam o sabor, dos molhos etc. É rápido, fácil e gostoso. Mas “fast-food”, em muitos contextos, é “junk-food”. Talvez na juventude os efeitos sejam pouco sentidos, mas, quando a idade vai chegando, comer aquele sanduíche depois das nove da noite pode significar uma noite maldormida. E, ainda que os efeitos não sejam bem percebidos, há impacto sobre o corpo: a inflamação pode ser sutil, mas é real.

O prazer rápido e fácil de um sanduíche ou de batatas chips traz consigo os efeitos nocivos para o corpo. De modo semelhante, os prazeres fáceis dos apetites sensuais trazem efeitos destrutivos para a alma.

A indisciplina está ligada à fraqueza de vontade e à busca por prazeres fáceis. De certa forma, é estranho pensar sobre isso. Acaso não estaríamos fazendo uma tempestade em copo d’água? Afinal de contas, trata-se apenas de eu não conseguir manter a disciplina para uma dieta, ou para tomar meus remédios, ou para fazer atividade física, ou ainda para fazer meu devocional. Não parece haver um grande significado por trás de um pequeno gesto de desleixo ou indisciplina. Mas é exatamente aí que mora o perigo.

Quando observamos as raízes da indisciplina no apego aos prazeres fáceis e aos apetites imediatos, percebemos que não apenas o significado do problema é maior do que imaginamos, mas também que começamos a notar que o mal não é estático, mas progressivo.

“Um abismo chama outro abismo”, diz a Escritura (Sl 42.7). E o que é apenas a descrição do sofrimento do salmista pode servir como uma máxima dos vícios em nosso coração. A indisciplina é o reflexo de um coração autocentrado e apegado aos prazeres fáceis, mas também é um caminho para afundarmos na autoindulgência e no descontrole em relação aos apetites sensuais.

É possível haver uma expressão localizada de indisciplina. Gustavo é um trabalhador dedicado, mas, fora do contexto de serviço, é um glutão descontrolado. Marília é muito controlada em sua alimentação, mas não consegue se controlar em seus impulsos consumistas.

A expressão localizada, no entanto, cederá com o tempo. A falta de domínio próprio em uma área tenderá a atingir outras áreas, porque o problema não é a área específica, mas o coração. É assim que os indisciplinados se tornam glutões, consumistas e praticantes descontrolados de atividade física, cedendo facilmente a outros apetites sensuais, como a pornografia e a promiscuidade sexual. Como nos diz John Henderson: “Se usarmos comida, bebida, mídia e outras coisas criadas como meios para servir a carne, então estabeleceremos condições sob as quais a pornografia prosperará”. (1)

Você consegue ver o tamanho do problema? Não se limita ao fato de você não conseguir manter a dieta. É que a indisciplina é um buraco negro que nos atrai para doses cada vez maiores de autoindulgência e descontrole, impelindo-nos a deixar de lado nossas responsabilidades e viver em função de nossos prazeres.

O artigo acima é um trecho adaptado com permissão do livro Produtividade redimida, de Allen Porto, Editora Fiel.


(1) Tradução livre: If we use food, drink, media, and other created things as means to serve the flesh, then we establish conditions under which pornography thrives. Henderson, John. The pornography ecossystem. In: KELL, Garrett; ROBINSON, C. Jeffrey. Porn and the pastor. Louisville, KY: SBTS Press, p.40.


Autor: Allen Porto

Allen Porto é pastor efetivo na Primeira Igreja Presbiteriana de Barretos (SP). É graduado em teologia pelo Instituto Superior de Teologia Reformada), especialista em história da igreja pela Faculdade Internacional de Teologia Reformada (FITRef) e mestre em teologia, com concentração em teologia filosófica, pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ).

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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