Orientações básicas para encorajá-la a falar
Cada casamento abusivo que encontramos será diferente, cada vítima será única e os níveis de intensidade e perigo envolvidos variarão significativamente. Por isso, é impossível fornecer um guia passo-a-passo sobre o que fazer. Cada situação exigirá uma resposta diferente orientada pelas Escrituras, que considere sabiamente o coração de cada vítima em particular e os cuidados de que ela precisa. Não há “solução” para a opressão. A Escritura nos chama a ver a opressão e a guiar e proteger os oprimidos. O cuidado que oferecemos deve ser centrado no evangelho, bem como em cada vítima.
Quando comecei a lidar com esposas vítimas de abuso e ouvi suas histórias, cometi muitos erros. Fiquei impressionada com o que estava ouvindo e não pensei nas respostas que estava dando ou nas maneiras como essas respostas poderiam afetar as vítimas. Agora entendo a importância de garantir que nossas respostas às histórias de abuso não causem mais danos à vítima, nem tirem sua capacidade de agir ou a levem a acreditar que o abuso que ela está sofrendo não é tão ruim quanto parece.
A lista de diretrizes a seguir orientará você antes de se envolver com as vítimas. O que você ouvirá delas será difícil. Você reconhecerá a malignidade de tudo aquilo; o abuso causa muitos danos. Às vezes, você será tentado a tomar as rédeas do processo, seja para carregar a vítima nos braços ou deixá-la para trás. Cada uma dessas diretrizes o ajudará a mantê-la no centro de sua própria história.
Expresse preocupação com gentileza
Aproxime-se de uma pessoa oprimida com sensibilidade, fazendo-a notar a preocupação que você tem por ela. Você pode dizer: “Estou preocupado com você porque você parece realmente estressa- da”. Tudo bem se ela não estiver pronta para falar sobre seu abuso. Ela pode ficar na defensiva, com medo de confiar em você ou sentindo-se envergonhada. Ao aproximar-se gentilmente, você lhe dá espaço para ela compartilhar quando estiver pronta. Se você forçar muito, ela pode não ser capaz de ver você como alguém acessível quando estiver disposta a compartilhar.
Reconheça que o opressor não é unidimensional
Quando uma vítima começa a compartilhar os duros detalhes de seu casamento e do sofrimento pelo qual passa, ela talvez se sinta culpa- da. Talvez ela fique preocupada com a possibilidade de deixá-lo enviesado contra o marido dela, pelo fato de ela lhe dizer apenas as coisas ruins a respeito dele. Talvez ela tenha dificuldade em aceitar seu conselho se você não reconhecer os bons elementos do relacionamento dela.
É útil tomar a iniciativa de perguntar à vítima o que seu marido faz de bom. Extraia dela seus pontos fortes e fracos. Lembre-se de que ela o amou e deseja que ele seja curado. Podemos facilmente esquecer isso, pois muitas vezes estamos focados no mal que uma pessoa está causando. Busque conhecer os elementos bons e ruins do relaciona- mento dela com seu cônjuge.
Siga o ritmo dela
Normalmente, as vítimas demoram para ver a extensão da opressão que está ocorrendo em seu casamento e, mais ainda, para saber o que fazer a respeito. Como pessoas de fora, é comum vermos a situação de uma vítima com mais clareza e urgência do que ela mesma. Vá ao encontro dela e ajude-a a ligar os pontos. Ela terá de viver com as decisões que precisar tomar no caminho, e poucas de suas escolhas terão consequências fáceis. É essencial que ela estabeleça o ritmo com base na sua própria clareza e urgência, não na nossa. Isso pode ser difícil para nós, quando vemos por quanta dor e sofrimento as vítimas estão passando, mas fazê-lo é vital para elas. Deus tem para conosco uma paciência sem fim e nunca se cansa de nos comunicar verdades vivificantes. Você deve imitá-lo.
Incentive-a a agir
Não se intrometa e tome para si o controle, na tentativa de resgatá-la. Ser oprimida significa ser controlada e ter suas escolhas tiradas de si. É vital que a vítima faça suas próprias escolhas. Ao restaurar-lhe a capacidade de agir, você está fornecendo uma parte necessária de sua cura e demonstrando acreditar que ela é capaz, com a ajuda de Deus, de fazer escolhas sábias. Ajude-a a pensar sobre o que ela pode fazer, e então veja como pode ajudá-la a realizar suas escolhas.
Encoraje-a em seus pequenos passos de fé
Quando você vir que ela está crescendo em sua capacidade de defender a si mesma, mudando a sua forma de orar, falando mais livremente sobre seu abuso ou dando pequenos passos, você deve chamar-lhe a atenção ao que Deus está fazendo nela. São as pequenas mudanças que lhe darão a coragem de dar saltos mais significativos e difíceis no futuro.
Ajude-a a construir uma equipe de cuidado
A opressão é um grande problema. A vítima precisará de muito apoio. É bom ter pessoas com quem ela possa orar e que possam lhe ajudar em suas muitas necessidades práticas. Uma equipe também pode ajudar a vencer o isolamento de que ela sofre. Ajude-a a encontrar pessoas que entendam de abuso e estejam dispostas a cuidar dela. Com o tempo, essa equipe de cuidado pode se estender para incluir pessoas treinadas para ajudar o marido a se arrepender do abuso. Veja o apêndice F para sugestões de especialistas em abuso, os quais podem ter funções especializadas na equipe.
Acredite no que ela diz
Expor o abuso é um considerável ato de coragem. As vítimas são mais propensas a encobrir ou minimizar o abuso do que inventar ou exagerar. Pode ser difícil imaginar que as alegações dela possam ser verdade — especialmente se você for enganado pela maneira como o opressor se apresenta publicamente. Com o tempo, você será capaz de verificar os detalhes da história dela; mas quando ela lhe contar pela primeira vez, não é hora de fazer perguntas que se concentrem em sua descrença ou dúvida. Lembre-se de que as vítimas tendem a contar histórias repetitivas, às vezes incoerentes e circulares. Esse é um efeito do trauma, portanto, tenha cuidado para não desmerecer o que elas estão dizendo por causa da maneira como elas estão dizendo. Nem sempre as vítimas conseguem encarar seu trauma enquanto vivem nele; por isso, muitas vezes, só depois de es- tarem seguras elas começam a revelar mais detalhes. Muitas pessoas ficam desapontadas quando isso acontece e pensam: “Se isso fosse verdade, ela teria me contado antes!”. Mas essa é uma suposição errada; considere que, se mais detalhes estão surgindo, é porque ela finalmente está segura para enfrentar seu abuso e falar sobre ele.
Leve o abuso dela a sério
O abuso é física e emocionalmente prejudicial. Entenda como uma vítima está sendo afetada pelo que lhe está acontecendo. Não subestime o perigo em que ela pode estar. Pequenas revelações podem sinalizar que há coisas mais sinistras ocorrendo. Trabalhe para continuar descobrindo sua história, permaneça alerta para a gravidade das feridas que ela está carregando e verifique sua situação em busca de possíveis sinais de perigo elevado (você aprenderá sobre isso no capítulo 6).
Considere que ela pode estar sendo vigiada e monitorada
As comunicações e a localização de muitas vítimas são monitora- das eletronicamente. Tenha cuidado em como, quando e onde você se comunica com ela para não a expor a mais perigo. Proteja a vítima, os pensamentos do coração dela e o relacionamento entre vocês.
Trate as informações dela com confidencialidade
Certifique-se de que as informações que ela compartilha com você não cheguem de volta ao seu marido até que você avalie a segurança dela e lhe estabeleça proteção. Caso aconselhe uma pessoa oprimida sem priorizar sua proteção, você pode colocá-la em mais perigo. A falha dos membros de uma equipe de cuidado em lidar sabiamente com informações entre si pode torná-la mais vulnerável a ataques. Se seu opressor for alertado sobre o que ela está pensando e planejando antes que ela esteja pronta, isso provavelmente causa- rá abusos mais intensos. Em um ambiente de igreja, as pessoas são frequentemente tentadas a confrontar os opressores e chamá-los ao arrependimento. Não faça isso a menos que o cônjuge oprimido esteja confortável, protegido e preparado.
Informe-a sobre os limites de sua confidencialidade
Se você for um profissional sob o dever de notificação compulsória[i]4 e uma esposa revelar um caso de abuso infantil, você terá de comunicá-lo à autoridade competente.[ii]5 Na verdade, se estiver ocorrendo abuso infantil, você deveria comunicá-lo à autoridade policial, seja você quem for. Porém, certifique-se de que a vítima não seja pega de surpresa e que ela entenda os limites de sua confidencialidade e o fato de que você vai fazer uma notificação. O ideal é que você possa envolvê-la no ato de notificar a polícia. Se alguma autoridade pública investigar a notificação, isso levará a um confronto com o opressor dela. Considere que ela precisará de segurança quando tal notificação for feita.
Ajude-a a fazer um plano de segurança
Isso é essencial quando ocorre abuso físico; mas mesmo que isso ainda não tenha acontecido, planeje a segurança da vítima. O pecado se intensifica ao longo do tempo, e pessoas controladoras podem mudar suas táticas, se necessário, para manter sua dominação. Não sabemos quando um abusador se tornará perigoso; portanto, um plano de segurança é sempre necessário. No entanto, precisa ser um plano que ela se sinta capaz de executar e seguir. Consulte o apêndice A.
Verifique periodicamente se o abuso está se agravando
Não devemos presumir que a intensidade do abuso de uma vítima permanecerá a mesma. Às vezes, quando uma vítima vê o que está na raiz de seu relacionamento matrimonial, ela começa a interagir de forma diferente com seu opressor (recusando sexo, deixando de se envolver em discussões ou resistindo ao isolamento), e o opressor pode sentir que está perdendo o controle — o que o leva a intensificar suas táticas de dominação. Isso é especialmente verdade se outras pessoas começam a pressionar o opressor. Ele pode tentar agravar suas táticas para fazer sua esposa recuar no processo de confronto. Portanto, certifique-se de monitorar quaisquer mudanças na intensidade de seu abuso.
Apoie-a enquanto ela compartilhar sua história com outros
Uma vítima pode ter que ir ao tribunal, à polícia, a um advoga- do ou à liderança de sua igreja. Ela não deve passar por isso sozinha. Ofereça-se para ir com ela ou ajude-a a encontrar outra mulher que possa apoiá-la. Ajude aqueles que estão envolvidos em reuniões da igreja com ela a ver que sua autoridade ou gênero podem intimidá-la. Certifique-se de que ela tenha alguém na sala que possa defendê-la e processar a experiência com ela depois.
Tenha paciência enquanto ela decide o que fazer
Quando você apresentar diferentes opções para uma vítima, não se esqueça do que ela está enfrentando enquanto resolve o que deve fazer. Pesquisas mostram que as vítimas têm dificuldade em revelar experiências de abuso — especialmente de abuso sexual. Isso faz sentido, considerando as implicações de longo alcance envolvidas na decisão de expor o assunto. Essas implicações também tornam compreensivelmente difícil que a vítima tome decisões sobre como responder ao seu abuso. Muitas vezes, as vítimas demoram a agir por- que percebem o conflito que resultará da sua iniciativa ou o perigo em que isso as colocará. Continue mostrando à vítima as opções que ela tem (como contar a outra amiga, pedir ajuda à igreja ou fugir do abuso), mas tenha em mente que pode levar meses até que ela decida o que fazer. Discutiremos isso mais a fundo no capítulo 12.
Não a pressione a sair antes de ela estar pronta
Quando vemos alguém sofrendo abuso, somos tentados a intervir e resgatá-la. O que aquela pessoa está suportando é mau e errado. Às vezes é até assustador para nós. Já temi pela vida de muitas mulheres com quem trabalhei e tudo o que eu queria era que elas saíssem de casa imediatamente. Teria sido bom e sábio que algumas delas fugissem de seu crescente abuso. No entanto, elas não estavam prontas para fazê-lo; e continuavam voltando para casa, semana após semana, apenas para retornarem a mim mais e mais feridas. Era de partir o coração — e assustador também. Eu as lembrava do perigo que estava vendo e reafirmava seu plano de segurança. Mas não as pressionava a dar nenhum passo. Elas não estavam prontas para seguir adiante.
É ainda mais perigoso para uma mulher sair do abuso e depois voltar a ele. O abuso sempre se intensifica após uma separação fracassada. Ela deve se separar quando estiver pronta para aplicar medidas que possam mantê-la segura, tais como evitar contato físico e ter pouca ou nenhuma comunicação com seu abusador.
Concentre sua crítica no comportamento, não na pessoa do opressor
Tenha cuidado para que sua crítica ao marido da vítima não seja um ataque global à sua pessoa, mas esteja focada em seu comporta- mento abusivo. Diga coisas como: “Foi errado ele atirar aquele objeto em você”; ou “É cruel da parte dele assustá-la”. Podemos ser tentados a dizer: “Ele é um mimado egoísta!”; ou “Como você pode viver com esse monstro?” Mas se você criticar o caráter do cônjuge dela como um todo, isso provavelmente a fará querer defendê-lo. Seja preciso e condene ações e motivações específicas.
Não justifique o comportamento abusivo
Faça todo o esforço para não justificar o comportamento abusivo que as esposas oprimidas estão experimentando. Embora elas possam atribuir o comportamento de seus maridos a embriaguez, uso de drogas, estresse no trabalho ou sentimentos feridos, você deve ser preciso na maneira de afirmar a responsabilidade desses opressores por seus próprios pecados. Nunca ofereça justificativas para o abuso; ele é sempre errado e sempre injustificável.
Lembre-se de que você não é um especialista
Não exagere seu nível de conhecimento. Ajude a vítima a procurar profissionais treinados em como lidar com o abuso. Se você nunca fez um plano de segurança ou ajudou alguém a fugir da violência, recrute profissionais para ajudá-lo. As vítimas não devem sofrer por nossa ignorância. Faça uso de recursos comunitários e profissionais.
Com essas diretrizes em mente, é hora de voltarmos nosso foco para um estudo de caso específico.
[i] N.E.: Nos Estados Unidos e diversos outros países, pessoas que trabalham regularmente com pessoas vulneráveis (como crianças) recebem treinamento e são legalmente obrigadas a notificar casos de abuso. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 245) obriga profissionais de saúde e da educação a comunicarem suspeita ou confirmação de maus tratos contra menores, e a Lei 10.778/2003 (art. 1.º) impõe aos profissionais de saúde da rede pública ou privada o dever de notificação compulsória de indícios ou confirmação de violência contra a mulher.
[ii] Falaremos mais sobre crianças que vivem em lares opressivos no capítulo 11.
Por: Darby A. Strickland. ©️ Ministério Fiel. Website: ministériofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Editor e revisor: Renata Gandolfo.