O autor e teólogo David Wells relatou, em seu livro God in the Wasteland, de 1994, que “estudantes [de seminário] estão insatisfeitos com a situação atual da igreja. Eles crêem que a igreja perdeu sua visão e esperam mais do que a igreja lhes tem dado”. Mas a insatisfação não é suficiente, como o próprio Wells concordou. Nós precisamos de algo mais. Nós precisamos recuperar positivamente o que a igreja deve ser. O que é a igreja em sua natureza e essência? O que deve distinguir e caracterizar a igreja?
Os cristãos, desde há muito, têm falado sobre as “marcas da igreja”. O tema da igreja não se tornou um centro de debate amplo, formal e teológico até a Reforma. Antes do século XVI, a igreja era mais pressuposta do que discutida. Era considerada o meio de graça, uma realidade que existia como a pressuposição do restante da teologia. Com o advento das críticas radicais de Martinho Lutero e outros no século XVI, contudo, a discussão acerca da natureza da própria igreja se tornou inevitável. Como explica um erudito: “a Reforma fez do evangelho, não da organização eclesiástica, o teste da verdadeira igreja” (Edmund Clowney, A Igreja [São Paulo: Cultura Cristã, 2007], p. 97).
Em 1530, Melanchthon elaborou a Confissão de Ausburgo, a qual, no Artigo VII, afirmava que: “esta Igreja é a congregação dos santos, na qual o evangelho é corretamente ensinado e os sacramentos, corretamente administrados”. E, para essa verdadeira unidade da Igreja, é suficiente que haja unidade de fé acerca do ensino do evangelho e da administração dos sacramentos. Em 1553, Thomas Cranmer produziu os Quarenta e Dois Artigos da Igreja Anglicana, nos quais ele escreveu: “A Igreja visível de Cristo é uma congregação de fiéis, na qual a pura palavra de Deus é pregada e os sacramentos são devidamente administrados”. João Calvino escreve em suas Institutas que “onde quer que vejamos a palavra de Deus ser puramente pregada e ouvida, e os sacramentos administrados conforme a instituição de Cristo, ali há, indubitavelmente, uma igreja de Deus”.
O Artigo 29 da Confissão Belga (1561) diz: “As marcas pelas quais se conhece a verdadeira Igreja são estas: se nela é pregada a pura doutrina do evangelho; se ela mantém a pura administração dos sacramentos tal como instituídos por Cristo; se a disciplina eclesiástica é exercida para punir o pecado; em resumo, se todas as coisas são orientadas segundo a pura Palavra de Deus, se todas as coisas contrárias a ela são rejeitadas, e Jesus Cristo é reconhecido como o único Cabeça da Igreja”.
Podemos ver nestas duas marcas – a proclamação do evangelho e a observância dos sacramentos – tanto a criação como a preservação da igreja – a fonte da verdade de Deus e o vaso gracioso que a contém e a revela. A igreja é gerada pela correta pregação da Palavra; a igreja é contida e distinguida pela correta administração do batismo e da Ceia do Senhor (Presume-se nesta última marca que a disciplina eclesiástica está sendo praticada).
Certamente, nenhuma igreja é perfeita. Mas, graças a Deus, muitas igrejas imperfeitas são saudáveis. Não obstante, temo que tantas outras não o sejam – mesmo entre aquelas que afirmem a plena divindade de Cristo e a plena autoridade da Escritura. As nove marcas, então, constituem um plano para recuperar a pregação bíblica e a liderança da igreja, num tempo em que tantas igrejas estão definhando em um cristianismo meramente nocional e nominal, com todo o pragmatismo e a insignificância resultantes. O propósito de muitas igrejas deixou de ser o de glorificar a Deus para ser simplesmente o de crescer, presumindo-se que esse objetivo, quando atingido, deve glorificar a Deus.
Numa sociedade em que o cristianismo vem sendo rápida e amplamente repudiado, em que a evangelização é muitas vezes considerada inerentemente intolerante, ou até mesmo oficialmente classificada como crime de ódio, descobrimos que nosso mundo mudou. A cultura a que temos de nos adaptar, para sermos relevantes, tornou-se tão intrinsecamente entremeada de antagonismo para com o Evangelho que conformar-se a essa cultura há de significar uma perda do próprio Evangelho. Em um tempo como este, temos de mais uma vez ouvir a Bíblia e repensar o conceito de ministério bem-sucedido, entendendo-o não como necessária e imediatamente frutífero, mas sim como um ministério notadamente fiel à Palavra de Deus.
Precisamos de um novo modelo para a igreja. Na verdade, o modelo de que precisamos é antigo. Precisamos de igrejas cujo principal indicador de sucesso não seja resultados evidentes, e sim fidelidade bíblica perseverante. Esse novo (antigo) modelo de igreja concentra-se em duas necessidades básicas em nossas igrejas: a pregação da mensagem e a liderança dos discípulos. Todas as primeiras cinco “marcas de uma igreja saudável” (pregação expositiva, teologia bíblica, um entendimento bíblico do evangelho, um entendimento bíblico da conversão e um entendimento bíblico da evangelização) refletem a preocupação em pregar corretamente a Palavra de Deus. As últimas quatro marcas (membresia de igreja, disciplina eclesiástica, interesse por discipulado e crescimento e liderança eclesiástica) abordam o problema de como administrar corretamente os limites e as características que identificam os cristãos, isto é, como liderar os discípulos.
O objetivo e propósito de tudo isto é a glória de Deus à medida que O tornamos conhecido. Por toda a história, Deus tem desejado tornar-se conhecido (p. ex., Êx 7.5; Dt 4.34-35; Sl 22.21-22; Is 49.22-23; Ez 20.34-38; Jo 17.26). Ele criou o mundo e realizou todas as Suas obras para o louvor da Sua própria glória. E é correto e bom que Ele tenha agido assim. Mark Ross o afirma desta maneira:
“Somos uma das principais peças da evidência de Deus… A grande preocupação de Paulo [em Efésios 4.1-16] quanto à igreja era que a igreja manifestasse e demonstrasse a glória de Deus, vindicando, assim, o caráter de Deus contra toda a zombaria das esferas demoníacas, a zombaria de que Deus não é digno de vivermos para Ele… Deus confiou à Sua igreja a glória do seu próprio nome.”
Todos os que lêem estas palavras – aqueles que são líderes eclesiásticos e aqueles que não o são – são feitos à imagem de Deus. Devemos ser retratos vivos da natureza moral e do caráter justo de Deus, refletindo-os pelo universo para que todos o vejam – especialmente em nossa união com Deus por meio de Cristo. É para isto e por isto, portanto, que Deus nos chama. Ele nos chama a vivermos unidos a Ele e unidos a nossa congregação, não para a nossa glória, mas para a glória dEle.