A teologia cristã é um aspecto da santificação da razão; a condição fundamental para o raciocínio teológico é a separação da razão, por Deus, bem como ser tomada, por Deus, para seu serviço. Assim como todo outro aspecto da vida humana, a razão é uma área da obra santificadora de Deus. A razão também — junto da consciência, da vontade e das afeições — precisa ser reconciliada com o santo Deus se quiser funcionar bem. E a boa teologia cristã somente ocorrerá se estiver enraizada na reconciliação da razão pela presença santificadora de Deus.
Esse discurso confronta algumas profundas convenções intelectuais e espirituais da cultura moderna. A modernidade tem, de modo característico, considerado a razão como uma faculdade “natural” — uma qualidade padrão, invariável e fundacional da humanidade, uma capacidade ou habilidade humana básica. Como faculdade natural, a razão, crucialmente, não está envolvida no drama da obra salvadora de Deus; ela não é caída, e, portanto, não precisa ser julgada, tampouco reconciliada ou santificada. A razão simplesmente é; ela é a humanidade em sua natureza intelectual. Consequentemente, a razão “natural” tem sido considerada como razão “transcendente”. A razão se posiciona fora e acima de toda convicção possível, de toda forma de vida particular e histórica, observando- as e julgando-as à distância. A razão não participa na história, mas faz julgamentos acerca da história; ela é um legislador intelectual transcendente e soberano e, assim, não responde a ninguém, a não ser a si mesma.
Essas concepções da razão se tornaram tão profundamente incorporadas na cultura moderna e em suas instituições intelectuais mais prestigiadas que se tornaram quase invisíveis a nós. Mas para a confissão cristã, essas concepções estão desordenadas. Acima de tudo, elas estão desordenadas porque desligam a razão e suas operações da economia do tratamento de Deus com suas criaturas. Pensar na razão como “natural” e “transcendente” desse modo é, pelo padrão da confissão cristã, algo corrompido, pois isola a razão da ação de Deus como criador, reconciliador e aperfeiçoador. Uma vez que a razão é vista como “natural” ao invés de “criada” (ou, para colocar de maneira diferente, uma vez que a categoria do “criado” é reduzida ao “natural”), então a contingência da razão é colocada de lado e sua suficiência é exaltada em dissociação do divino dom da verdade. Ou, novamente, quando a razão é apresentada como uma competência natural, então ela não mais é entendida como caída e carecendo de reconciliação com Deus. De novo, quando a razão é considerada como uma capacidade humana de transcendência, então a contínua dependência da razão para com o Espírito vivificador é deixada de lado, pois a razão natural não necessita ser santificada.
A teologia cristã, entretanto, deve insistir em diferir. Deve insistir em diferir porque a confissão do evangelho, pela qual a teologia governa sua vida, exige que se diga que a humanidade, na sua inteireza, incluindo a razão, está contida na história do pecado e da reconciliação. A história do pecado e sua superação pela graça de Deus diz respeito à recriação da humanidade como um todo, e não simplesmente daquilo que identificamos restritivamente como seu aspecto “espiritual”. E, por isso, a razão, não menos do que qualquer outra coisa, encontra-se debaixo da exigência divina de ser santa para o Senhor seu Deus.
A teologia cristã é uma instância particular da santidade da razão. Aqui também — como em todo o pensar verdadeiro —, precisamos delinear o que acontece à medida que a razão é transformada pela obra julgadora, justificadora e santificadora do Deus triúno. A santificação da razão, ademais, envolve uma medida de diferença: a transformação da razão anda de mãos dadas com o inconformismo. A razão santa é a razão escatológica, a razão submetendo-se ao processo de renovação de todas as coisas enquanto o pecado e a falsidade são postos de lado, a idolatria é reprovada e a nova criação é confessada com arrependimento e deleite. E, se o que Paulo chama de renovação da mente (Rm 12.2) deve ser visto em algum lugar, tem de ser na teologia cristã, na qual a razão santa é convocada para tratar da grande questão sobre Deus e todas as coisas em Deus. Assim buscamos responder: O que está envolvido no comprometer-se com a teologia santa? Como essa ocupação singularmente trabalhosa deve ser caracterizada?
Artigo adaptado do livro Santidade, de John Webster, publicado pela Editora Fiel.