Uma das minhas amigas mais queridas é gêmea idêntica. Apesar de nos conhecermos há mais de vinte anos, nunca havia estado pessoalmente com a gêmea de Alivia até dois anos atrás. Eu tinha visto fotos de Alison, ouvido histórias a seu respeito e até falado com ela ao telefone. As fotografias e as vozes de Alison e Alivia pareciam idênticas para mim.
Quando Alison visitou nossa igreja com a família de Alivia, todos eles acharam que seria muito divertido pregar uma peça em mim. Você pode imaginar onde isso vai dar. Eis que entra “Alivia” com todos os seus quatro filhos. Ela veio até mim, com os braços bem abertos para me abraçar, como sempre faz. Eu soube imediatamente que algo estava errado. Antes que ela pudesse me abraçar, empurrei meus braços para frente e disse: “Espere, espere, espere. O que está acontecendo?” Todos nós caímos na risada enquanto Alivia espiava da esquina, e percebi o que eles estavam fazendo. Todas as crianças ficaram muito desapontadas por eu não ter caído na brincadeira.
Meu marido, por outro lado, ficou completamente pasmo. Mark estava se preparando para o culto quando Alison, não pregando nenhuma peça, se aproximou dele e estendeu a mão: “Mark, eu só queria me apresentar”. Ele ficou se perguntando se Alivia tinha ficado louca. Aparentemente, Alison não parou de conversar enquanto meu marido ficava ali estupefato.
Quando minhas filhas viram Alison com todos os filhos de Alivia, andando à volta dela, supuseram, é claro, que ela fosse Alivia. Minha filha mais nova disse não saber dizer quem era quem. Minhas filhas mais velhas disseram que suspeitaram que Alison não era Alivia quando ela começou a falar.
Todos nós tivemos reações diferentes à gêmea de Alivia, com base em quão bem conhecíamos Alivia. Eu podia ver nos olhos de Alison que essa não era a minha amiga. Embora seu cabelo, seus maneirismos, sua roupa e até mesmo o modo como ela andava fossem semelhantes aos de Alivia, eu sabia que não era ela. E, embora Alivia tivesse estado em nossa casa durante anos com todos nós lá, minhas filhas e meu marido não tinham se sentado com ela, rido com ela e chorado com ela, como eu havia feito.
Muitas vezes, só podemos reconhecer uma falsificação quando conhecemos muito bem o original. Se não estivermos intimamente familiarizadas com o que é verdadeiro, não seremos capazes de detectar uma falsificação quando ela entrar e apertar a nossa mão. E assim é com a verdade espiritual. Se você e eu não estivermos intimamente familiarizadas com a forma como Deus se revelou e com a verdade através de sua Palavra, corremos o risco de acreditarmos em falsificações quando elas forem apresentadas a nós como se fossem verdade. Como vimos no capítulo 1, a ascensão do eu autônomo conquistou todas as nossas fronteiras culturais. Nós nos deificamos, e tudo o mais em nossa cultura deve se curvar. A igreja não ficou incólume à essa revolução. As falsificações entraram na igreja em pele de carneiro e nos pegaram desprevenidas.
Passamos de uma fé centrada em Deus para uma fé centrada no eu, sem nos darmos conta disso. Em algum ponto do caminho, em vez de perguntar: Como posso servir a Deus, começamos a perguntar Como Deus pode me servir?
Um relacionamento egocêntrico com Jesus
Embora essa mudança da centralidade em Deus para a centralidade no eu se deva em grande parte ao canto da sereia do eu, ela também foi inadvertidamente reforçada pela priorização bem-intencionada da igreja para que os crentes tenham um relacionamento pessoal com Jesus.
De fato, a rendição pessoal ao Senhor é crucial, conforme vimos no capítulo 3. “Esse momento” deve acontecer para todo cristão. Cada indivíduo deve estar enraizado em Cristo e permanecer em Cristo. Mas, assim como um derramamento de óleo no oceano, essa ênfase em um relacionamento pessoal tocou áreas que nunca deveria ter tocado.
Por exemplo, a convicção e o encorajamento corretos para que os crentes tenham um momento de solitude com o Senhor foram alterados de tal forma que “agora acreditamos que a Bíblia se dirige a nós imediatamente. Isso é claramente visto na exigência de devocionais que transformam versículos bíblicos em palavras encorajadoras particulares que Deus fala apenas a mim.”1 Em outras palavras, não mais nos esforçamos para estudar a Bíblia pelo que ela é: a Palavra de Deus. Em vez disso, procuramos palavras especiais que se destinam apenas à aplicação pessoal.
Eu me identifico com isso. Quantas manhãs, sonolenta, peguei a Bíblia e pedi a Deus que me desse um estimulante espiritual? Ou quantas vezes virei as páginas até encontrar a fala perfeita, o incentivo exato para a minha situação? Não é que essa abordagem seja totalmente errada, mas ela não é suficiente. Ela está muito focada em nós e não no autor.
O uso superficial das Escrituras na busca do que elas podem oferecer a você e a mim individualmente é destrutivo – porque não sabemos o que estamos perdendo. Ao comermos pequenos petiscos aqui e ali, nós perdemos o banquete que Deus pretendia nos servir. Em seu livro, Saving the Bible from Ourselves [Salvando a Bíblia de nós mesmos], Glenn Paauw diz que o nosso “foco é centrado no benefício pessoal e não centrado no sistema doutrinário […] É duvidoso, porém, que quando Deus nos deu a Bíblia, sua intenção fosse que cortássemos e colássemos lembranças sagradas dela enquanto deixássemos a própria história para trás”2.
O teólogo N. T. Wright chama isso de síndrome do “livro mágico”, “cujo ‘significado’ tem pouco a ver com o que os autores do primeiro século pretendiam”.3 Em vez disso, Wright diz que interpretamos a Escritura de acordo com o nosso próprio tipo de espiritualidade ou estilo de vida. Receio que sejamos culpadas das acusações. Insistimos em que a Bíblia só serve ao nosso momento particular, ao nosso dia, às nossas necessidades, aos nossos hábitos e, portanto, perdemos uma compreensão mais completa e profunda da grande história de Deus.
Vemos essa priorização do eu nas prateleiras das livrarias cristãs. O discipulado cristão se transformou, em grande parte, em autoajuda. Os livros são escritos e comercializados para ajudá-la a desenvolver um eu melhor. Em vez de expor a bondade de Deus, os títulos convidam você a ser o seu melhor eu e a viver a sua melhor vida.
O foco no eu também é visível na música popular cristã
Se você passar uma hora ouvindo as melhores canções cristãs no rádio, notará que muitos dos títulos e das letras são focados no eu em vez de serem focados em Deus. O que é problemático sobre a música de adoração priorizando o eu é que, como diz a líder de adoração Keith Getty: “O que cantamos se torna a gramática do que cremos”4. A música não é neutra – afeta nossas mentes, nossos corações e nossas almas. As canções centradas no eu reforçam a nossa carne natural centrada no eu e a nossa cultura centrada no eu.
Em suma, seja em nossos tempos de solitude, em nossos livros ou em nossa música, nós, cristãs, estamos em grande parte engajadas em um evangelho truncado. Em vez de buscarmos a liderança do Senhor, estamos buscando liderá-lo.
Em vez de nos submetermos ao Deus poderoso, estamos pedindo a ele que se submeta a nós.
Estamos tentando criar Deus à nossa imagem, em vez de caminhar como criaturas feitas à imagem dele. Em vez de perguntar: Como posso servir a Deus, estamos perguntando Como Deus pode me servir?
Artigo adaptado do livro Que Eu Diminua, de Jen Oshman. Publicado pela Editora Fiel.
1 Glenn Paauw, Saving the Bible from Ourselves: Learning to Read and Live the Bible Well (Downer’s Grove, IL: InterVarsity Press, 2016), cap. 12, Kindle edition.
2 Paauw, Saving the Bible from Ourselves, chap. 7, Kindle edition.
3 N. T. Wright, The New Testament and the People of God (Minneapolis, MN: Augsburg Fortress, 1992), 4, conforme citado em Paauw, Saving the Bible from Ourselves, cap. 5, Kindle edition.
4 Joan Huyser-Honig,“Keith Getty on Writing Hymns for the Church Universal,” Cal- vin Institute of Christian Worship, 1 de setembro de 2006, https:// worship.calvin.edu/ resources/resource-library/keith-getty-on-writing-hymns-for-the-church-universal/.