sexta-feira, 29 de março

A glória somente a Deus

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Que diferença Deus faz na segunda-feira pela manhã?

 

O texto abaixo foi extraído do livro:  Por que a Reforma Ainda é Importante?, de Michael Reeves e Tim Chester, lançamento de julho/2017 da Editora Fiel.

 

Soli Deo gloria, “a glória somente a Deus”, era uma das principais afirmativas do pensamento da Reforma. A Reforma enfatizou que todas as realizações da salvação estavam distantes do valor humano, colocando tudo aos pés de Deus. Ninguém podia dizer: “Recebi a vida eterna porque tenho uma vida boa, ou sou religiosamente consagrado, ou minha razão é bastante sagaz”. Toda a glória pertence somente a Deus. Nisso, os reformadores refletiam o pensamento de Paulo em 1 Coríntios 1.28-31:

Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus.

Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.

Mas, soli Deo gloria também se tornou o resumo de um estilo de vida reformado. A vida cotidiana tornou-se o contexto no qual glorificamos a Deus. Tal ênfase na vida cotidiana vinha da redescoberta dos reformadores das Escrituras, pois elas refletem o cristianismo bíblico. Mas também fluiu de sua redescoberta da justificação pela fé.

Redirecionamento das boas obras

A Missa passou a ser vista como um sacrifício, a renovação do ato de expiação no Calvário que assegurou a bênção de Deus. Assim, quanto mais era realizada, mais Deus se agradava. Nem precisava da presença da congregação. A Missa podia ser rezada por padres repetidamente, de forma mecânica. Essa prática reforça a ideia de que a essência do cristianismo ocorre longe da vida do dia a dia. E leva a um mundo dividido: o espiritual e o secular.

Onde ocorre a atividade que tem valor para Deus? Se nós somos justificados por infusões de “graça” administradas por meio dos sacramentos, como sugere a igreja católica, então as atividades na igreja que importam são as sacramentais. Ou, se queremos alcançar união com Cristo por meio do misticismo e da contemplação, as atividades importantes são aquelas que acontecem no monastério. Se você está desejoso de conhecer a Deus, deve tornar-se monge. Se a pessoa está desejosa de servir a Deus, deve tornar-se sacerdote, freira ou frade.

A redescoberta de Lutero acerca da justificação pela fé removeu o ímpeto de tais atividades. Deus não exigia deveres religiosos como forma de pagamento para a salvação. Se a justificação passar pela fé, o foco e a natureza das atividades religiosas mudam radicalmente. Lutero discute em detalhes a natureza das boas obras em seu tratado A Liberdade do Cristão. Ele começa pela justificação. Somos salvos somente pela fé, e “não parcialmente pela fé e parcialmente pelas obras. Qualquer reivindicação no sentido de que suas obras contribuem para a salvação nega a efetividade da fé. Sem fé em Cristo, não existe conexão com as obras”. O que Lutero quer dizer é que, se não for possível ter fé em que somente Cristo salva, nada mais poderá nos beneficiar.

Isso desperta a seguinte pergunta: Por que, então, tantas obras são prescritas na Escritura? Uma boa resposta é que os mandamentos da Escritura revelam nossa incapacidade de cumpri-los. Por meio deles, o homem é “verdadeiramente humilhado e reduzido a nada a seus próprios olhos”. Seu propósito é nos direcionar às promessas da Escritura. Eles nos impulsionam para os braços de Cristo.

Então, podemos negligenciar as boas obras? A resposta de Paulo a essa pergunta em Romanos 6.1-2 é: “De maneira nenhuma!”. A resposta de Lutero é semelhante: “Eu respondo: não é assim, ó homens ímpios, não é assim”. E explica:

 

Embora, como tenho dito, um homem seja abundante e suficientemente justificado pela fé internamente em seu espírito, e assim tem tudo de que precisa, exceto quanto a essa fé e essas riquezas devam crescer no dia a dia até a vida futura; contudo, ele permanece em sua vida mortal sobre a terra. Nesta vida ele tem de controlar seu próprio corpo e lidar com os homens. Aqui começam as obras; aqui o homem não pode gozar de ócio; aqui certamente ele tem de disciplinar seu corpo por meio de jejuns, vigílias, labutas e outras disciplinas razoáveis, e sujeitar-se ao Espírito, para que obedeça e se conforme ao homem interior e à fé, não se revoltando contra a fé e impedindo o homem interior, como é a natureza do corpo fazer se não for impedido. O homem interior, que, pela fé, foi criado à imagem de Deus, é jubiloso e feliz devido a Cristo, em quem tantos benefícios lhe foram conferidos; e, portanto, é sua única ocupação servir a Deus com alegria e sem pensar em lucro, em amor que não se constrange.

 

Eis o que Lutero está dizendo. Primeiro, embora não tenhamos de controlar nossos corpos para alcançar o céu, temos de viver “esta vida mortal sobre a terra”. As disciplinas espirituais são importantes para garantir que nossa vida externa se conforme a nosso novo status interno, para que nosso corpo “obedeça e se conforme ao homem interior e à fé”. A extensão em que faz isso, bem como as situações em que cada um de nós tem de jejuar e labutar, variam de pessoa a pessoa, porque nosso objetivo é controlar a cobiça da carne. Tal autodisciplina não é um fim em si mesma, mas um meio para o autocontrole. “Porém, aqueles que presumem ser justificados pelas obras não consideram a mortificação das concupiscências, mas apenas as próprias obras, e acham que, se apenas tivessem conseguido realizar tantas e tão grandes obras na medida que lhes fosse possível, terão feito bem e se tornaram justos.”

Segundo, embora não tenhamos de controlar nossos corpos para atingir o céu, essa é nossa alegria, devido aos benefícios conferidos sobre nós em Cristo, no sentido de que agora desejamos “servir a Deus com alegria”. Anteriormente, servíamos a Deus porque acreditávamos que isso levaria à nossa salvação— era um serviço centrado no eu. Agora servimos com “amor sem constrangimento”.

Em seguida, Lutero oferece uma variedade de analogias para ilustrar seu ponto de vista:

Somos como Adão e Eva antes da Queda, que trabalhavam livremente para agradar a Deus, e não para obter justiça, que eles já possuíam em plena medida.

Somos como um bispo que cumpre com seus deveres porque ele é bispo, e não a fim de se tornar bispo.

Somos como uma árvore que produz bons frutos porque é uma boa árvore, e não para se tornar uma boa árvore.

Somos como uma casa bem construída. Uma boa casa não é o que faz um bom construtor. É o bom construtor que constrói uma boa casa. Nossas obras não nos fazem bons. Uma vez que somos feitos bons pela fé, então produzimos boas obras.

Ao nos livrar da necessidade de realizar boas obras para nossa própria salvação, o evangelho nos liberta para fazer o bem por amor ao próximo:

O homem […] não necessita dessas coisas para sua justiça e salvação. Portanto, ele deve ser guiado em todas as suas obras por esse pensamento, e contemplar somente isto: que ele sirva em benefício do próximo em tudo que fizer, nada considerando exceto a necessidade e o proveito de seu próximo.

Em vez de fazer o bem para Deus, temos de Deus esse bem. Mas esse bem que vem de Deus deverá fluir para os outros. Cristo se identificou conosco de modo que, “de Cristo, tem fluido todas as boas coisas e estas estão fluindo em nós”. Da mesma forma, devemos nos identificar com o próximo para que as boas coisas “fluam sobre aqueles que têm necessidade delas”.

A igreja católica acreditava que uma pessoa realizava boas obras para ser salva. As boas obras eram feitas para Deus, a fim de ganharmos sua aprovação. Mas Lutero rejeitou a ideia de que as boas obras fossem feitas para Deus. Afinal, Deus não necessita de nossas boas obras. As boas obras feitas para Deus, que nos tiram do mundo (exercícios espirituais, vida monástica, votos de celibato e pobreza), não decorrem do fato de ele precisar delas. Em vez disso, nossas boas obras são feitas pelo nosso próximo. Assim, o evangelho nos impele de volta para o mundo, a fim de servir em amor ao próximo.

Concluímos, portanto, que o cristão não vive por si mesmo, mas em Cristo e para seu próximo. De outra feita, ele não é cristão. Vive em Cristo pela fé, em seu próximo pelo amor. Pela fé, ele é levado para além de si mesmo, para Deus. Por amor, ele desce abaixo de si mesmo, para seu próximo.

 


Autor: Tim Chester

TIM CHESTER é pastor da Igreja Grace in Boroughbridge, North Yorkshire, Inglaterra. É plantador de igrejas, faz parte do ministério Atos 29, fundador e um dos diretores do Seminário Porterbrook e é autor de mais de 20 livros. Tim é casado com Helen com quem tem duas filhas.

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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