quarta-feira, 11 de dezembro
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A queda da humanidade: história (1/5)

Uma das maiores histórias já contadas é a história de um homem tentando voltar para casa. Ele esteve lutando na maior guerra da sua era, mas agora o seu maior desafio reside logo à sua frente: voltar para casa. O seu nome era Ulisses, e sua história é contada na grande obra de Homero, A Odisseia.

O problema de Ulisses não era que ele meramente não sabia o caminho. Era que de alguma forma, depois ter ido embora, o mundo havia se tornado maior. Os obstáculos haviam se tornado maiores (ele derrotaria Ciclope ou viraria o seu jantar?). As escolhas haviam se tornado mais agonizantes (ele perderia o seu navio inteiro para Caríbdis ou apenas alguns homens para Cila?). E as tentações haviam se tornado mais fortes (não apenas Sereias, mas a belíssima Calipso tentando-o a abandonar o seu lar de uma só vez). Em diversos momentos da história, você se pergunta se Ulisses irá mesmo voltar para casa. E não apenas isso: será que ele encontrará a sua esposa e seu filho, o seu lar e seu reino, como ele os deixou? Mais importante de tudo, irão eles encontrar o mesmo homem de vinte anos atrás?

2500 anos mais tarde, aquela história continua ecoando conosco. Apesar de todas os avanços da tecnologia, medicina e conhecimento que foram adicionados à nossa “qualidade de vida”, lá no fundo o sentimento de que vivemos em um lugar habitável, porém inquestionavelmente hostil, é tão inescapável para contemporâneos quanto para os gregos antigos. Assim como diz a famosa frase de Thomas Wolfe: “As coisas que ocorrem ao homem são trágicas. Isso é inegável no fim de tudo. Todavia, precisamos negá-lo ao longo do caminho. A humanidade foi moldada para a eternidade”. Designados para a eternidade e, no entanto, nós nos vemos aqui, em um mundo que – com toda a sua beleza – é ferozmente cruel e sem perdão. Sentimos que esse mundo não é do jeito que devia ser, e, no entanto, não conseguimos descobrir o que aconteceu ou como consertá-lo. Com o tempo tomamos conhecimento que a conclusão de Wolfe estava correta, que, ainda que com grande esforço, “você não consegue voltar para casa”. Nós não temos nem certeza de onde está o nosso lar.

Essa história sobre deixar a casa para trás e precisar voltar, mas sem saber como ecoa conosco porque é uma história bem mais antiga do que o épico poema de Homero e bem mais pessoal do que o romance de Wolfe. É mais antiga, pois é parte da Grande História ou Narrativa que Deus conta sobre os seus atos e pronunciamentos que vão do princípio ao fim da História. É mais pessoal, pois é a nossa história, sua e minha. É a história da falta de repouso, daquele vazio dentro de nós que simplesmente não vai embora, não importa quão agradável a vida se torne.

Ao contemplarmos esse problema, olhamos para o problema que reside no coração da história bíblica, aquilo que os teólogos cristãos se referem como Queda. Isso é uma questão de teologia bíblica. Buscaremos entender a Bíblia como uma narrativa singular divinamente inspirada, uma revelação do propósito e plano de Deus para a humanidade que se desdobra em tempo e espaço. Ao considerarmos a história inteira da Bíblia a partir dessa perspectiva, eu espero que entendamos melhor não somente a nossa própria condição – o que significa que todos nós verdadeiramente abandonamos nossa casa – mas como de fato também podemos voltar de novo.

A história da Queda

A história da Queda começa no Paraíso. Deus criou Adão e Eva e os colocou em mundo perfeito para que refletissem a sua glória. Ele providenciou que eles tivessem tudo o que precisavam. Ele lhes deu um trabalho significativo, prazeroso e gratificante. Ele os deu um ao outro. E ele os estabeleceu como subgovernantes sobre toda a criação. Entretanto, havia apenas um limite que ele colocou por cima da liberdade e autoridade deles. Havia uma árvore no Jardim do Éden, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, da qual eles não deveriam comer. Neste cenário, aparece Satanás ocupando o corpo de uma serpente. Satanás tenta Adão e Eva a fazerem a única coisa que não deveriam fazer: comer da árvore proibida. Incrivelmente, eles caíram no seu esquema e escolheram desobedecer a Deus. Ao consumarem o ato, eles passaram de um status de plena ausência de culpa diante de Deus e de si mesmos, para um status de desonra, vergonha e condenação moral.

Imediatamente tudo muda. Porque decidiram se rebelar, Deus julga Adão e Eva. A vida será cheia de dor, sofrimento e tristeza. E mais: eles foram expulsos do Paraíso e exilados do seu lar. Não sendo a expulsão temporária, um anjo empunhando uma espada flamejante foi posicionado na entrada do Jardim assegurando que eles nunca retornariam vivos. Todavia a sua expulsão física é somente o prelúdio de um exílio muito mais profundo que não somente os afetará, como todos os seus descendentes. Nós que fomos criados para viver para sempre – moldados para a eternidade, como disse Wolfe – somos sujeitos ao eterno exílio da morte.

Muitos em nossa cultura querem abafar esse ponto da história. Eles reagem contra a história porque parece apresentar uma imagem de um Deus perverso e petulante que reage exageradamente ao flagrar os seus filhos com a mão dentro do pote de biscoito. Homens chamados a pregar e ensinar essa história precisam estar preparados para tal reação e pedir às pessoas que retenham seus julgamentos. É somente quando a história se desdobra e a magnitude dessa rebelião se torna evidente que a maldição de Deus é vindicada.

Seguindo com a história, nós vemos que as consequências da rebelião de Adão e Eva são mais profundas do que pareciam no começo. Os filhos nascem, todavia não em inocência. O âmago da natureza de Adão e Eva foi corrompido e contorcido. Agostinho descreveu essa natureza como “voltando-se para si mesmo”, de modo que a natureza humana não reflete mais a glória de Deus, mas somente um senso abarrotado de si mesmo. E tal natureza, juntamente com a culpa que a acompanha, é repassada para seus filhos. Assim, as coisas não continuaram normais depois da Queda. Pelo contrário, ela continua e se aprofunda à medida que a criação termina em morte e decomposição. Como W. B. Yeats memoravelmente disse e Chinua Achebe ilustrou: “as coisas se despedaçam, o que é central não se mantém”. Satanás planejou exterminar as almas de Adão e Eva. Não demorou muito e Caim efetivamente assassina seu irmão Abel. Satanás planejou causar um obstáculo entre Adão e Eva quando um culpou o outro em função do causaram. Algumas gerações mais tarde, Lameque ignora qualquer ideia que se possa ter sobre união matrimonial e toma para si duas esposas. Caim comete assassinato por causa de uma intensa cobiça; Lameque comete homicídio simplesmente porque foi meramente ferido. E assim as coisas prosseguem, até que a perversidade da humanidade cresce a tal ponto que que “toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6.5 NVI). Deus decide que deve finalmente julgar os próprios homens e mulheres que criou à sua própria imagem.

Deus envia o Dilúvio para destruir a humanidade, poupando somente Noé e sua família, e o mundo tem um novo começo. É como se Noé fosse um novo Adão que pode “tentar outra vez” num mundo novinho em folha. O único problema é que Noé e sua família ainda possuem a natureza caída que herdaram de Adão. Mais uma vez o pecado se desenvolve bem onde foi deixado para trás. Eventualmente, a humanidade volta exatamente onde estava nas vésperas do Dilúvio. Dessa vez. o alvo de suas más intenções não é tanto a violência de um contra o outro, mas, sim, contra Deus, à medida que procuram estabelecer a sua absoluta e completa independência, simbolizada na Torre de Babel. Mais uma vez, Deus julga a humanidade, dessa vez não a destruindo, mas frustrando-a. Em Gênesis 11, a linguagem da humanidade é confundida, separando-nos um do outro. Deus dispersa a humanidade pela face da terra e desse modo frustra os nossos intentos idólatras.

Nesse contexto de divisão, frustração, futilidade e morte, Deus chama para si um povo especial. Dando início com Abraão, Deus separa o seu próprio povo do restante da humanidade. Esse povo – um Adão coletivo – é chamado pelo nome de Deus. Eles devem obedecê-lo e conhecê-lo como o seu Deus. Todavia, até aqui, a Queda insiste em se fazer presente. Ló e sua família escolhem a perversidade de Sodoma e Gomorra ao invés da piedosa sociedade com Abraão. Esaú prefere os confortos desse mundo ao invés das promessas de Deus. Finalmente, ainda que Deus tenha resgatado a nação de Israel da escravidão do Egito e a trazido para a Edênica Terra Prometida, a nação de Israel escolhe adorar a Deus na forma de ídolos, e, em seguida, Deus é completamente abandonado em favor dos ídolos.

Aquilo que Israel fez coletivamente, os seus reis fizeram representativamente. Israel exigiu um rei para se parecer com as nações que não conheciam Deus, e o seu primeiro rei, Saul, era exatamente o que desejavam. Alguns reis mais tarde, Salomão começou bem, entretanto o seu coração se voltou aos ídolos em lealdade às suas esposas estrangeiras. Jeroboão, o primeiro rei do reino do norte, deliberadamente determinou o culto idólatra para enfraquecer a lealdade das dez tribos à Jerusalém. Acaz, rei do sul Judá, demonstrou em quem confiava ao construir uma cópia de um altar à Baal em Damasco e inserindo-o no Templo de Israel.

Em resposta, Deus consistentemente visitou o seu povo com julgamento. Repetindo Gênesis 11 e Gênesis 3, Deus primeiro os separa e finalmente os expele, exilando-os da Terra Prometida. Setenta anos mais tarde, o reino do sul de Judá retorna do exílio, mas é evidente que o seu exílio espiritual continua. Deus não volta a habitar no Templo reconstruído, e o Santo dos Santos é deixado vazio. Eventualmente, até mesmo os profetas caem no silêncio. No final do Velho Testamento, o povo visível de Deus está num estado tão arruinado quanto os gentios. Ambos estão diante da ameaça do eminente julgamento de Deus. Mais explicitamente, as palavras finais do Velho Testamento ecoam Gênesis 3, alertando que Deus virá e ferirá a terra com uma maldição.

À medida que o Novo Testamento inaugura um novo profeta, João Batista, ele aparece em cena e assume o legado de Malaquias, advertindo o povo de que o juízo está próximo. Porém, parece que ninguém está ouvindo. Deus envia o seu próprio filho, Jesus, o qual leva uma vida de perfeito amor e perfeita obediência, uma vida que não deveria ter ofendido ninguém. Contudo, a humanidade se tornou tão perversa que agora judeus e gentios tramam em conjunto para matar o único homem que nunca mereceu morrer. Em conjunto, eles o pregam no madeiro, na cruz, e declaram que o seu único rei era César.

Isso aconteceu há dois mil anos atrás. Desde lá, a corrupção e a maldade da humanidade se expandiu muito mais e com maior eficiência. No entanto, nada, de fato, mudou. Todas as guerras que hoje ocorrem, toda violência e morte, a escravidão, os genocídios que consistentemente marcaram os últimos cem anos, a exploração de mulheres e crianças desejando gratificação sexual, até mesmo a cruel indiferença entre o rico e o pobre, tudo isso têm sido apenas um comentário estendido daquela primeira declaração de independência contra Deus.

Qual será o fim da Queda? Qual será o final dessa história? Um outro profeta chamado João, o apóstolo João, nos conta. Em Apocalipse 18, nós vemos a Queda final, um dia no futuro, quando este mundo cairá debaixo do julgamento final de Deus, para nunca mais se levantar. Naquele dia, todos aqueles que por toda a história persistiram em sua rebelde declaração de independência, os quais escolheram o culto aos ídolos em oposição à Deus, serão deixados de fora do céu, e o tormento angustiante do seu exílio no inferno durará por toda a eternidade.

 

Tradução: Paulo R. de A. Santos
Revisão: Vinicius Musselman Pimentel


Autor: Michael Lawrence

Michael Lawrence é o pastor principal da Hinson Baptist Church em Portland, Oregon, EUA, e o autor de Biblical Theology in the Life of the Church (publicado em inglês pela editora Crossway, sem tradução em português).

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