domingo, 5 de maio

A devoção de uma mãe

O texto abaixo foi retirado com permissão do livro Como meus pais nutriram a minha fé, de Elisabeth Elliot, Editora Fiel

Mamãe não pensava de si mesma como alguém profundamente espiritual. E teria protestado se alguém o tivesse dito. Mas, sem dúvida, ela era faminta por Deus, intensamente consciente de sua própria fraqueza e necessidade dele. Chamada a ser mãe, encarregada da santa tarefa de cooperar com Deus em moldar os destinos de seis pessoas, mamãe sabia que isso era um fardo muito pesado para carregar sozinha. Ela não tentou. E buscou aquele cujo nome é Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade. Pediu a sua ajuda.

Ela pedia — diariamente. Não bem cedo, na manhã, como papai o fazia (ela não tinha de pegar um trem suburbano); mas, depois que as crianças saíam para a escola, mamãe ia para seu compromisso com o Senhor. Não sei quando me tornei ciente disso pela primeira vez. É provável que não foi em Germantown, mas talvez na casa na avenida Oak. Mamãe sempre tinha sua “pequena cadeira de embalo”, como ela a chamava, no seu quarto, ao lado da antiga mesa de costura que ficava embaixo da janela. Em cima da sua nítida toalha branca de linho, estava a ordeira pilha de Bíblia, hinário e pequeno caderno de oração vermelho, com uma caneta acessível. Mamãe, tão ereta quanto a Mãe de Whistler, sentava-se em sua cadeira de embalo, lendo, cantando em voz suave, orando e, eventualmente, rabiscando algo na margem de sua Bíblia ou no caderno vermelho.

Já falei como papai e mamãe começaram sua vida conjugal orando juntos e como, posteriormente, nos reuniam cada dia, de manhã, à tarde e na hora de dormir, para oração. Foram pedras lançadas como alicerce do lar que eles moldaram. Outro alicerce era a vida individual de oração deles. Não há dúvida de que as influências, nos primeiros oito a dez anos da vida de um filho, determinam muito bem seu curso futuro. Aquele que passa com Deus a maior parte das horas em que está desperto é o principal moldador do caráter de seu filho. Esse era o plano de Deus quando criou Eva para ser a mãe da raça humana e Adão para ser o seu marido (protegê-la, suprir as necessidades e cuidar). Mamãe não buscava a Deus somente por nós. Ela estava regularmente lá, mantendo seu compromisso com Deus —– por nós. À semelhança do Senhor Jesus, por causa de nós ela se santificava.

Mamãe lia a Bíblia —– lia a Bíblia e orava sobre ela (“Maravilhoso Conselheiro, abre Tua Palavra para o meu coração. Abre meu coração para a Tua Palavra”), marcava-a, citava-a, pedia ajuda ao Senhor para entendê-la, lembrá-la e viver por ela. Mamãe acreditava que toda palavra da Bíblia era inspirada por Deus, útil para o ensino, para repreensão, para correção, para educação na justiça.

Já dissemos que mamãe sempre lia a Bíblia e orava depois do café da manhã. Mas, sem dúvida, não é possível alguém ater-se perfeitamente a uma agenda, especialmente com uma família grande. Houve outros tipos de lapsos, como mostra um poema em que ela mesma indica ser a autora:

Quão endurecido e frio o coração — como morto — No qual os raios da Palavra do próprio Deus,

Em meditação diária, não comunicam seu calor.

Se por negligência não nos achegamos a esse fogo, 

A princípio, não percebido, entra um frio tremente.

E, quando o Livro permanece negligenciado por dias, 

Esse frio assume controle, até toda a alma ficar doente.

E, quando novamente buscamos a Palavra de Deus, 

Com coração vazio e alma em desespero acentuado, 

Ele vem até nós fielmente — louvado seja o Senhor! 

E derrama óleo e vinho sobre todo o nosso cuidado.

À medida que seus filhos cresciam, seu senso de necessidade desse tempo de oração fiel crescia. Apenas o último dos seus cadernos de anotação sobreviveu, mas é uma revelação de seu desejo por Deus e de suas esperanças quanto a seus filhos. A primeira página contém a oração do rei Davi quando o templo estava para ser construído (mamãe sempre escrevia com inicial maiúscula todos os pronomes que se referiam à Trindade, ainda que a versão bíblica não o fizesse):

Teu, Senhor, é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a majestade; porque Teu é tudo quanto há nos céus e na terra; Teu, Senhor, é o reino, e Tu te exaltaste por chefe sobre todos. Riquezas e glória vêm de Ti, Tu dominas sobre tudo, na Tua mão há força e poder; contigo está o engrandecer e a tudo dar força. Agora, pois, ó nosso Deus, graças Te damos e louvamos o Teu glorioso nome. – 1 Crônicas 29.11-13

Embaixo, ela colocou uma referência à última estrofe de um poema de Amy Carmichael, de Em direção a Jerusalém:

Portanto, nos achegamos, Tua justiça, a nossa veste, Teu sangue precioso, a nossa única, única alegação. Portanto, nos achegamos, ó Salvador, Senhor, Amado. A quem, Senhor, poderíamos nos achegar, senão a Ti?

Há listas de oração para cada dia da semana, com os nomes de nós seis no topo de cada lista. Mamãe orava frequentemente as palavras de 1 Crônicas 29.19: “A_, meu filho, dá coração íntegro para guardar os teus mandamentos, os teus testemunhos e os teus estatutos”. Uma pequena nota de rodapé diz: “Isso é, sem dúvida, em favor de Betty e Ginny também”. Ela tinha uma grande lista de organizações cristãs de todos os tipos, referindo-se a elas pelas iniciais — PBI, HDA, LAM, SST, SIM, NYBS, ABWE, NCEM etc. — cujas necessidades ela colocava diante de Deus. Mamãe orava por nome em favor de muitos missionários. Lembrava as escolas e faculdades cristãs em que seus filhos estudavam. Billy e Ruth Graham, amigos de meus pais durante anos, constavam em sua lista de terça-feira; uma classe de estudo bíblico de uma neta, na lista de quinta-feira. Ela dedicava às sextas-feiras especialmente à confissão, citando orgulho, criticismo, dúvida, falta de amor e de ações de graça, frieza, desobediência. Ao lado dessa última, ela anotou Deuteronômio 11.26-27: “Eis que, hoje, eu ponho diante de vós a bênção […] quando cumprirdes os mandamentos do Senhor, vosso Deus, que hoje vos ordeno”. Ela orava por graça, com base em Romanos 5.20: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”.

Mamãe fez grande uso de hinos. Ela sabia de cor muitos, talvez centenas de hinos; lia-os, orava sobre eles e os cantava sozinha, apesar do enfraquecimento e estremecimento de sua voz nos anos posteriores. O caderno de anotações cita alguns hinos muito bons. Eis um hino que teve um significado especial depois que seus “filhotes” voaram — o hino de I. S. Stevenson, de 1869:

Pai santo, em Tua misericórdia, Ouve a nossa oração ansiosa,

Mantém os nossos amados, agora distantes, Perto do Teu cuidado.

Jesus, Salvador, que Tua presença Seja a sua luz e o seu guia;

Em sua fraqueza, guarda-os, ó guarda-os, Ao Teu lado.

Quando em tristeza, quando em perigo, Quando em solidão,

Em Teu amor, visita e conforta A sua aflição.

Que a alegria da Tua salvação, Seja a sua força e a sua firmeza; 

Que Te amem e Te louvem Dia após dia.

Espírito Santo, que Teu ensino Santifique a sua vida;

Envia Tua graça para que vençam No conflito.

Pai, Filho e Espírito Santo, Deus, o Um em Três,

Abençoa-os, guia-os, salva-os, mantém-nos Perto de Ti.

Mães de hoje que sentem que sua obra tem sido desvalorizada pelo mundo acharão encorajamento nestas linhas (das quais mamãe não dá a fonte):

Neste breve tempo, o que mais importa, Enquanto labutamos, agimos e esperamos, Se cumprimos o papel que ele nos atribui, Seja ele um pequeno ou um grande labor?

Como a maioria de nós, mamãe era frequentemente incomodada pela questão de sentimentos e experiências serem ou não uma medida válida para seu crescimento na graça. Ela e eu conversamos muitas vezes sobre isso, e ambas tínhamos certeza de que, se a nossa “espiritualidade” ou a nossa aceitação diante de Deus dependesse de emoções e arrepios, éramos, dentre todas as mulheres, as mais infelizes. Não podíamos apelar aos sentimentos. Ela anotou três passagens que a ajudaram. A primeira é do livro O conhecimento de Deus, de J. I. Packer:

Não é quando buscamos sentimentos e experiências… mas quando buscamos a Deus mesmo, olhando para ele como nosso Pai, valorizando a comunhão com ele e tendo em nós mesmos um interesse crescente de conhecê-lo e agradar-lhe, que a realidade do ministério do Espírito se torna visível em nossa vida. Essa é a verdade imprescindível que pode nos erguer e retirar do lamaçal de opiniões não espirituais sobre o Espírito no qual muitos estão atolados em nossos dias.

A segunda é do livrete Broken Bread [Pão partido], de Evan Hopkins:

Somos tentados frequentemente a pensar que, por causa dos sentimentos flutuantes e de dúvidas embaraçadoras, não somos mais aceitáveis diante de Deus? Lembremos que nunca é por causa de qualquer coisa em nós que somos aceitos, de maneira alguma. A medida de nossa aceitação é o que Cristo é para Deus; e isso permanece sempre o mesmo.

E a outra é de George MacDonald: 

“A mais elevada condição da vontade humana se evidencia em que, mesmo não vendo a Deus e parecendo que não o compreendemos de modo algum, ainda assim nos apegamos a Ele”.

George MacDonald não fazia parte da biblioteca de papai, mas chegamos a conhecê-lo depois, quando um amigo começou a enviar-me as edições originais de seus romances maravilhosos. Mamãe amava-os e achou neles, bem como eu, muito que corrigiu e moldou seu entendimento espiritual. Ela citou de What’s Mine’s Mine [O que é meu é meu]:

“‘Nada de bom virá disso…’, ela disse… ‘Tudo de bom virá disso, Mamãe, se Deus quer que venha’.”

De Warlock of Glenwarlock [Warlock de Glenwarlock], ela citou:

Ela sofria de reumatismo, que descreveu como uma “aflição em seus ossos”. Mas ela nunca perdeu sua paciência e tirava o bem de uma aflição que parecia especialmente enviada como a disciplina final de pessoas velhas para este mundo, a fim de que comecem bem no mundo vindouro.

Não há escape do moinho que tritura lentamente e tritura miúdo; e aqueles que se recusam a ser pedras vivas no templo vivo têm de ser triturados em argamassa para isso.

Uma cópia mimeografada de um poema anônimo está colada numa página do caderno de anotações. Contém uma máxima que mamãe achava bastante confortadora e fortalecedora em todos os tipos de circunstâncias, especialmente o tipo que era propenso à paralisia que a autopiedade traz:

De um velho curato inglês de perto do mar 

Veio no crepúsculo uma mensagem para mim; 

Sua estranha lenda saxã, gravada no coração, 

Contém, parece-me, ensino procedente do céu. 

E, através das horas, as palavras quietas ressoam 

Como suave inspiração: “FAZE A COISA SEGUINTE”.

Muitos questionamentos, muito temor, 

Muitas dúvidas têm seu tranquilizar aqui. 

Momento após momento, descidos do céu, 

Tempo, oportunidade e orientação são dados. 

Não temas os amanhãs, filho do Rei,

Confia-os a Jesus, faze a coisa seguinte.

Faze-a imediatamente, faze-o com oração;

Faze-a confiantemente, lançando todo cuidado; 

Faze-a com reverência, seguindo a Sua mão, 

Que a entregou a ti com mandamento solene. 

Firmado na Onipotência, salvo em Suas asas,

 Deixa todos os resultados, faze a coisa seguinte.

Olhando para Jesus, cada vez mais sereno, 

Trabalhando ou sofrendo, seja o teu proceder; 

Em Sua doce presença, o descanso de Sua calma, 

A luz do Seu rosto sejam o teu salmo,

Firme em Sua fidelidade, louva e canta.

Então, como Ele te ordena, faze a coisa seguinte.

Mamãe anotou esboços modestos do que aprendia das Escrituras — como Deus dirige nosso caminho (ao ouvido atento, Is 30.21; à mão vazia, Is 41.13; aos pés espontâneos, Lc 1.79); o que o nome do Deus de Jacó faz por nós — dezesseis coisas do Salmo 20; um estudo das ocorrências de “maior que”; a importância da obediência com base na vida de Ester; cinco marcas do povo de Deus segundo John Stott: crescimento, comunhão, adoração, testemunho e santidade.

Ela cita o poema de Robert Browning “O melhor ainda está por vir” e a teoria da relatividade de Einstein: “A amalgamação de espaço, tempo e matéria em uma unidade fundamental”, ao que ela anexa Hebreus 1.3:

“Sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder” e Colossenses 1.7: “Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste”.

Uma pequena anotação traz uma dor profunda ao meu coração, ao escrever este livro. Com uma caneta vermelha, mamãe escreveu minhas iniciais e uma data (infelizmente — lembro a dor que eu lhe estava causando na época, mas hoje posso agradecer a Deus por sua graça e misericórdia) na margem ao lado destas palavras de Christina Rossetti:

Minha fé está fraca, minha esperança está fraca; 

Somente o desejo do meu coração clama em mim; 

Pelo grande estrondo de sua necessidade e tristeza, Ele clama a Ti.

No rodapé, ela escreveu: “Nenhum poder — não sabemos o que fazer — nossos olhos estão fitos em Ti. 2Cr 20.12”.

 

Por: Elisabeth Elliot. ©️Ministério Fiel. Website: ministeriofiel.com.br. Traduzido com permissão. Fonte: Como meus pais nutriram a minha fé. Editor e revisor: Renata Gandolfo.


Autor: Elisabeth Elliot

Elisabeth Elliot (1926–2015) foi uma das mulheres cristãs mais influentes do século XX. Nascida na Bélgica, filha de missionários, ela inspirou, com sua fé corajosa, seguidoras de Cristo em todo o mundo através de suas experiências como esposa, mãe e missionária. Seu primeiro marido, Jim Elliot (1927–1956), foi morto, com outros quatro missionários, quando buscava dar testemunho de Cristo entre os Auca, atualmente conhecidos como Huaorani, no leste do Equador. Alguns anos depois dessa tragédia, Elisabeth, com sua filha ainda pequena, passou a viver entre os membros dessa mesma tribo, a fim de compartilhar com eles o precioso evangelho. Em seu retorno para os Estados Unidos, Elisabeth deu início ao seu ministério como palestrante e escritora, publicando mais de vinte livros que foram traduzidos para diversas línguas. Seu ministério continua a influenciar gerações de mulheres ao redor do mundo.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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