Algumas vezes, quando me vejo trocando de canais como se estivesse procurando algo digno de ser assistido na televisão, penso em minha infância, quando tínhamos apenas três ou quatro canais para escolher. Como posso ter acesso a tantos canais e, ainda assim, encontrar tão pouco daquilo a que eu realmente queira assistir?
Recentemente, ouvi falar do canal The Puppy, um canal de televisão a cabo que durou pouco. Vinte e quatro horas por dia, você poderia ligar no canal The Puppy e assistir a filmagens de filhotes. Filhotes brincando. Filhotes mastigando. Sem fala alguma; apenas música instrumental. Quem não gostaria de assistir a filhotes? Evidentemente, não pessoas o bastante, pois o canal saiu do ar dentro de três ou quatro anos.
Em minha busca por entretenimento, existem muitas coisas que deixo passar por não ter o desejo de assistir ao que é mostrado. Por vezes, eu me pego assistindo a um programa de TV ou a um filme que incluem cenas violentas ou sangrentas demais para mim. Quando isso acontece, coloco minhas mãos em frente aos meus olhos com os dedos levemente afastados, de forma que eu não tenha de ver o que não quero ver, mas ainda consiga enxergar o suficiente para saber quando a cena tiver terminado, para que eu saiba quando posso começar a assistir novamente.
Pergunto-me se alguns de nós têm a tendência de tentar algo semelhante com a Bíblia. Há muitas partes da Bíblia, aspectos ou ações do Deus da Bíblia, que nos deixam desconfortáveis, as quais preferimos não olhar muito de perto. Talvez haja uma parcela de nós que deseje colocar as mãos nos olhos diante de certas porções da Bíblia para não ter de vê-las, de forma que, por entre as aberturas, enxerguemos apenas aquelas partes que fazem com que nos sintamos bem.
A Bíblia revela um Deus que, ao longo da história, derramou sua ira sobre seus inimigos. Para alguns, isso soa um tanto primitivo e talvez inconsistente com um Deus que é amor. Talvez achemos que as descrições da ira dele são excessivamente duras, muito preto no branco ou vingativas. Talvez pensemos que algumas pessoas que experimentam a ira de Deus não a merecem de fato. Preferimos ignorar, suavizar e, talvez, até mesmo apagar essas cenas.
No entanto, eis-nos em Apocalipse. O livro simplesmente não nos permite ignorar isso. De fato, Apocalipse, particularmente Apocalipse 15 e 16, nos desafiará a pensar de forma muito diferente sobre a ira de Deus. Essa passagem nos convidará a pararmos de nos proteger desse aspecto do caráter e do plano de Deus e, em vez disso, começar a observá-lo com propósito. E, enquanto encaramos a ira de Deus apresentada nessa passagem, veremos que essa ira flui das suas excelências e perfeições.
Também veremos que os habitantes do céu de forma alguma estão constrangidos pela ira de Deus. É bem o oposto: eles a celebram. Ela parece cooperar para a dignidade de Deus de receber a honra e o louvor, em vez de a diminuir. Então, o que eles sabem que nós não sabemos? O que mudou a perspectiva que eles têm deste mundo e do mal presente nele que precisa mudar as nossas perspectivas?
Na realidade, nós já testemunhamos o derramamento da ira de Deus nos capítulos anteriores, não é mesmo? À medida que os selos foram abertos, vimos uma medida de ira derramada sobre toda a era entre a primeira e a segunda vindas de Cristo, culminando com o sétimo selo, que corresponde ao retorno de Cristo e o julgamento final. Se você se lembrar, os julgamentos dos selos impactaram um quarto da Terra. Semelhantemente, vimos a ira revelada nas trombetas, as quais serviram para advertir as nações sobre o julgamento final, representado pela última trombeta, que anuncia o Reino de Cristo, o qual colocará fim ao reino deste mundo. Os julgamentos das trombetas impactaram um terço da Terra. As sete taças apresentadas em Apocalipse 15 e 16 são mais abrangentes e finais. Elas servem para responder à pergunta: o que acontece quando o julgamento das trombetas, as quais têm a intenção de incitar pecadores e rebeldes ao arrependimento, falham em fazê-lo?
Quando chegamos, no capítulo anterior, aos primeiros versículos de Apocalipse 15, ouvimos o cântico dos “vencedores da besta, da sua imagem e do número do seu nome” (v. 2). O texto diz que eles entoavam “o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro” (v. 3). Em outras palavras, eles entoavam o cântico que o povo de Deus cantou depois de atravessar o Mar Vermelho e ver as muralhas de água inundarem o exército egípcio (Êx 15). Porém, esse também é “o cântico do Cordeiro”. Evidentemente, João quer que vejamos o que ele está prestes a nos apresentar à luz do que aconteceu no Egito. Portanto, talvez devêssemos revisar um pouco essa história.
Lemos em Êxodo que o povo de Israel gemia por causa da escravidão e porque seus filhos vinham sendo sistematicamente mortos logo em seu nascimento, sendo jogados no Rio Nilo para se afogarem. Êxodo 2.23 diz que o clamor por resgate chegou até Deus. Você enxerga a similaridade com a situação de muitas das igrejas às quais João escreveu? Nas passagens de Apocalipse, também lemos sobre o clamor do povo de Deus que vinha sendo morto — não pelos egípcios, mas pelos opressores romanos.
Em resposta ao clamor dos israelitas no Egito, Deus lembrou-se de sua aliança e enviou um libertador, Moisés. Conforme Moisés levantava seu cajado, Deus enviou uma série de pragas sobre o Egito, as quais tinham a intenção de fazer conhecida sua glória, expor os falsos deuses do Egito e chamar Faraó ao arrependimento. Porém, vez após vez, o coração de Faraó foi endurecido. Em Apocalipse 15 e 16, veremos que Deus escuta os clamores daqueles que são perseguidos e envia uma série de pragas sobre os seus perseguidores, as quais têm a intenção de fazer a glória dele conhecida, expor seus falsos deuses e chamá-los ao arrependimento. E veremos que os corações dos perseguidores também estão endurecidos.
Por ocasião do êxodo, Deus abriu o Mar Vermelho para que o povo de Israel o atravessasse por terra seca. Contudo, quando os egípcios foram atrás deles naquela terra seca, as águas se voltaram sobre eles e os destruíram. Moisés escreve: “Assim, o Senhor livrou Israel, naquele dia, da mão dos egípcios; e Israel viu os egípcios mortos na praia do mar” (Êx 14.30). Os israelitas reconheceram que foi o julgamento de Deus contra seus inimigos que providenciou a libertação do povo, e isso os moveu a cantar um cântico que celebrava o triunfo do Senhor. E é exatamente isso que temos em Apocalipse 15: o povo do Senhor, em pé na margem oposta àquela em que ocorre a perseguição da besta que sobe do mar, entoando um cântico que celebra o triunfo do Senhor sobre seus inimigos; pois ele reconhece que foi isso que providenciou a sua libertação. Eles não estão constrangidos pela ira que Deus derramou sobre os seus perseguidores; eles regozijam-se nela. Eles enxergam a sabedoria, a bondade e o amor leal de Deus nessa ira. Do ponto de vista deles, é possível enxergar que o derramar da ira sobre aqueles que os perseguiram é uma gloriosa demonstração de quão grande, impressionante, justo, verdadeiro e completamente reto Deus é. Por isso eles cantam:
Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos, Ó Rei das nações!
Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor? Pois só tu és santo;
por isso, todas as nações virão e adorarão diante de ti,
porque os teus atos de justiça se fizeram manifestos. (Ap 15.3-4)
Eles não estão com medo de olhar de frente e de forma profunda a ira de Deus, visto que são capazes de enxergar com clareza que a ira é justa e verdadeira. A santidade de Deus a exige. Ela é parte do que o torna digno de ser adorado pelo mundo inteiro. Ela é o epítome dos seus “atos de justiça [que] se fizeram manifestos”.
Este artigo é um trecho adaptado do livro As bençãos do Apocalipse, de Nancy Guthrie, Editora Fiel.
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