sexta-feira, 3 de maio

Crise de identidade: O cansaço de ser de si mesmo

Se eu sou meu e pertenço a mim mesmo, preciso definir quem “eu” sou. Meu pais podem escolher meu nome, e o governo pode emitir um número de registro, mas apenas eu mesmo posso decidir minha identidade. De forma parecida com a necessidade de nos justificarmos, a responsabilidade de nos definirmos não é algo que podemos optar por não fazer. Ser uma pessoa é ter uma identidade. E o entendimento contemporâneo de humanidade decreta que cada um de nós tem a liberdade e a responsabilidade de definir essa identidade.

Pense nisto: a história básica que contamos a nós mesmos no mundo moderno é uma história de autodescobrimento. Nossos filmes, nossa literatura, nossos programas de TV repetidamente seguem a história de um protagonista que deseja saber quem realmente é, descobrir seu self mais autêntico, descartar as expectativas de seu pai, de seus professores e do resto da sociedade, para, então, trilhar o próprio caminho. Pegue virtualmente qualquer animação da Disney produzida nos últimos 30 anos ou qualquer um dos dramas recentes que questionam as expectativas de gênero ou as normas sexuais. Na literatura, muitas das grandes obras de meados do século XX são explicitamente a respeito de autodescoberta: Homem invisível, de Ralph Ellison, A redoma de vidro, de Sylvia Plath, ou Ceremony, de Leslie Marmon Silko. Podemos até mesmo dizer que autodescoberta é a jornada do herói de nosso tempo.

Quem é você? Qual é a sua personalidade? O que o motiva? O que o apaixona? Como você percebe a si mesmo? Como você quer que o mundo o veja? Essas questões não são facilmente respondidas, e nossas respostas frequentemente mudam ao longo das diferentes estações de nossa vida. Mas o que não muda é a obrigação de respondê-las, de definir quem nós somos — publicamente. Quando essa obrigação torna-se esmagadora, nós a chamamos de uma “crise de identidade”. Muitas pessoas sofrem de uma crise de identidade crônica, mudando de uma identidade para outra ao longo da vida.

Enxergamos como uma questão natural que a adolescência seja uma época de crise de identidade. A juventude é um período em que você encontra a si mesmo, define-se em oposição a seus pais e a seu passado e explora as diversas identidades possíveis. Essa crise é distinta do desconforto natural que muitos adolescentes sentem enquanto passam pela puberdade. Da mesma forma que os jovens estão aprendendo a sentir-se normais em um corpo que muda rapidamente, eles também estão debaixo de uma pressão cultural para descobrirem quem são. Qualquer identidade que escolham (que quase sempre é definida pelo mercado), será contestada por aqueles que tenham identidades diferentes; por isso, eles nunca se sentem seguros.

Mas os adultos também não se sentem muito mais seguros em suas identidades. Apesar de nós gostarmos de apresentar essas dúvidas em uma linguagem que implica crescimento, e não exploração (que é coisa para os jovens), a ansiedade é a mesma. Quando ela se manifesta na forma de uma crise de meia-idade (que ainda tem a ver, fundamentalmente, com redefinir quem você é), a ansiedade pode levar as pessoas a fazerem escolhas de vida drásticas e repentinas, que trazem profundas consequências.

Umas das experiências mais desmoralizantes trazidas pelo envelhecimento tem sido testemunhar tantos casais terminarem seus casamentos por causa de uma crise de meia-idade. Um dos cônjuges sente que sua identidade é inadequada quando comparada a outras pessoas (eu não me importo nem sinto que esteja pleno ou que signifique algo), ou talvez eles fiquem perdidos comparando as diferentes identidades possíveis que eles poderiam adotar (e se eu não estivesse casado com uma mulher que me deixa sexualmente insatisfeito? E se meus filhos não atrapalhassem a minha carreira? E se eu pudesse viver em uma cidade melhor?). Em todo caso, uma ou ambas as partes passaram a acreditar que só podem alcançar suas vidas reais, satisfatórias e autênticas se acabarem com o casamento. Algumas vezes, isso envolve uma relação extraconjugal. Outras vezes, envolve abandonar a fé religiosa, ou suas crenças políticas, ou sua identidade sexual ou de gênero. Vi isso acontecer com pessoas próximas a mim (1). Todos nós vimos acontecer com celebridades gospel.

Meu ponto é que adultos casados no Ocidente passam pela experiência relativamente comum de acordar um dia e concluir que os papéis, relacionamentos, obrigações e estilos de vida que costumavam definir suas identidades já não trazem plenitude. Em momentos assim, uma pessoa moderna pode vir a sentir que seria imoral não seguir essa nova e mais verdadeira identidade — mesmo que isso machuque muitas pessoas ao redor dela. Obviamente, se nós somos realmente responsáveis por descobrir e expressar nossa identidade, a pressão moral para sermos verdadeiros a nós mesmos, apesar das maneiras como isso afeta outras pessoas, faz completo sentido.

As pessoas nem sempre acharam que crises de identidade eram normais. De fato, enquanto pessoas modernas sofrem com crises de identidade, as sociedades do passado sofriam com crises espirituais. O melhor exemplo disso é a Divina Comédia, de Dante, que famosamente começa da seguinte forma: “Da nossa vida, em meio da jornada / Achei-me numa selva tenebrosa / Tendo perdido a verdadeira estrada” (2). Uma razão pela qual essas linhas encontraram ressonância com os leitores ao longo dos séculos é que o poeta está descrevendo uma experiência humana comum: caminhar até chegar à metade da vida e descobrir que se está perdido. Talvez você acorde uma manhã questionando se a sua vida vale a pena ser vivida. Ou você pode acordar perguntando quem é você.

Independente disso, essa imagem de alguém que descobre que está fora da “verdadeira estrada” e perdido na “selva tenebrosa” é uma imagem que ressoa. Mas a “verdadeira estrada” significava algo diferente para Dante do que para nós hoje. Dante não perdeu sua identidade; ele não está confuso a respeito de quem é. Ele perdeu sua visão espiritual.

Logo depois de perceber que estava na selva tenebrosa, Dante vê o nascer do sol sobre uma montanha. Ele desesperadamente tenta escalar a montanha para chegar mais perto do sol (que representa o Filho de Deus e a iluminação divina), mas é impedido por três animais representando seus pecados. Nesse ponto, o poeta Virgílio aparece e conduz Dante através do Inferno, do Purgatório até subir ao Paraíso. Para Dante, no século XIV, a questão não era “quem sou eu?”, mas “quem é Deus?” e “como tornar-se mais parecido com Cristo?” A Divina Comédia descreve os esforços de um homem para conhecer a Deus, mas é também a maneira do poeta descrever a jornada espiritual que todos devemos trilhar. No processo de conhecer a Deus, Dante aprende mais e mais a respeito de si mesmo, a respeito de seus pecados e das maneiras como Deus o abençoa. No entanto, autoconhecimento é um subproduto de conhecer a Deus; não é o objetivo. O objetivo é conhecer a Deus e tornar-se como ele.

Se A Divina Comédia fosse escrita hoje, penso que seria a história de um homem para conhecer e expressar a si mesmo — essa é a jornada que toda pessoa moderna deve percorrer. A “verdadeira estrada” não representa o caminho de Cristo, mas um processo de autorrevelação e atualização. A “selva tenebrosa” representaria uma crise de identidade, e as bestas impedindo a passagem para a autoatualização seriam as expectativas culturais e dúvidas de si mesmo, em vez de pecados. Uma Divina Comédia moderna talvez ainda incluísse a religião ou Deus, mas apenas enquanto ajudassem o protagonista a descobrir o seu self verdadeiro e real — uma reversão completa da visão original do poeta italiano. Da crise espiritual de Dante até nossa moderna crise de identidade, a busca se altera: de fontes externas para fontes internas. Uma maneira de entender essa mudança é reconhecer que, ao contrário do poeta do século XIV, as pessoas do nosso tempo tendem a acreditar que elas são suas e que pertencem a si mesmas. Como resultado, suas identidades estão sob questiona- mento. Nós podemos perder nosso self de maneiras que não fariam muito sentido para Dante.

Mesmo quando descobrimos nosso self verdadeiro ou criamos nossa própria identidade, ainda precisamos de algum tipo de validação externa e, portanto, precisamos expressar a nós mesmos — um processo chamado de “individualismo expressivista”. Somos nossos e pertencemos a nós mesmos, mas a identidade sempre requer o reconhecimento de outras pessoas. Há uma tensão aqui, e você pode encontrá-la em toda nossa cultura.

Por um lado, há o empurrão da autonomia: “Eu sou meu; apenas eu posso definir a mim mesmo; não importa como as outras pessoas me veem, apenas como eu vejo a mim mesmo”. Por outro lado, há o empuxo do reconhecimento, que é uma parte inerente da identidade: “As pessoas precisam reconhecer-me por quem sou e ver-me como desejo ser visto”. Um adolescente escuta músicas que refletem e expressam sua personalidade para outras pessoas, mesmo que as letras tratem explicitamente da rejeição dos julgamentos e opiniões de outras pessoas. Um homem de meia-idade veste uma camiseta que diz: “Apenas Deus pode me julgar”, mas ele claramente quer que você o julgue baseado na camiseta que ele está vestindo. Lutamos para definir nossas identidades individualmente, mas estamos sempre dependentes do reconhecimento dessa identidade por outras pessoas.

A resolução para essa tensão é simples, mas idealista: nós queremos que todos reconheçam e afirmem nossa identidade exatamente como nós definimos nossa identidade neste momento específico do tempo. Ninguém tem o direito de definir quem eu sou, mas, para que eu tenha uma identidade, preciso que eles vejam e afirmem quem sou. E, a fim de fazer com que as pessoas vejam quem sou, preciso me expressar — muitas vezes. Quanto mais as pessoas virem e afirmarem minha identidade, mais seguro me sinto. Acredito que isso explique parcialmente a glorificação da fama (e da infâmia) em nossos tempos. Nós somos formados pela lógica da economia da atenção, em que a atenção para as propagandas, aplicativos, artigos, imagens, vídeos, trending topics (3) e assim por diante é uma medida de valor.

Quando nossa identidade requer reconhecimento e afirmação em público, você nunca pode parar de expressar a si mesmo. Nenhuma pessoa é significativa o bastante para embasar permanentemente sua identidade com seu olhar de aprovação, apesar de que nós, algumas vezes, nos permitimos pensar dessa forma. Particularmente quando somos jovens, inseguros e apaixonados, podemos imaginar, com facilidade, que, se ele ou ela apenas olhasse para nós com aprovação, sentiríamos que estamos seguros enquanto pessoas. Mais tarde na vida, talvez imaginemos que uma conquista na carreira ou nas artes são o embasamento definitivo de nossa identidade. Mas nunca é o bastante. E a coisa mais assustadora é que todas as pessoas na sociedade estão fazendo exatamente o mesmo. Todos estão em suas próprias jornadas privativas de autodescobrimento e autoexpressão. Em alguns momentos, a vida moderna parece como se bilhões de pessoas estivessem na mesma sala, gritando o próprio nome para que todos os outros saibam que eles existem e quem são — que é uma descrição razoavelmente adequada das mídias sociais. Ser reconhecido é atrair o olhar e a atenção dos outros. Ser afirmado é atrair seu olhar de aprovação. Mas, se todos nós somos responsáveis por criar e expressar nossas próprias identidades, todos estão competindo com todo o resto por nossa atenção limitada. Então, ninguém está seguro o bastante em sua própria identidade para embasar a nossa com sua aprovação. Como podemos lidar com essa competição tão acirrada?

O trecho acima foi retirado com permissão do livro Humanidade em crise, de Alan Noble, Editora Fiel (em breve).

(1) Algumas horas depois de escrever essa frase, descobri que outro amigo havia terminado o casamento depois de passar por uma crise de identidade e de ter uma relação extraconjugal. É uma situação realmente deprimente.

(2)  Dante Alighieri, A Divina Comédia, trad. José Pedro Xavier Pinheiro (São Paulo: Atena, 1955), 1.1-2.

(3) N. do T.: termo usado para categorizar os assuntos por ordem de relevância nas redes sociais.


Autor: Alan Noble

Alan Noble (PhD, Baylor University) é professor associado de Inglês na Oklahoma Baptist University, cofundador e editor-chefe da revista online Christ and Pop Culture e consultor da organização AND Campaign. Ele escreveu artigos para os portais Atlantic, Vox, BuzzFeed, The Gospel Coalition, Christianity Today e First Things. Ele é autor de Disruptive Witness.

Ministério: Editora Fiel

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