domingo, 15 de dezembro
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Erasmo, Lutero e o “livre arbítrio”

Martinho Lutero, ao venerável D. Erasmo de Rotterdam, com os votos de Graça e Paz em Cristo“. É assim que Lutero introduz a sua obra De Servo ArbítrioA Escravidão da Vontade, resposta à famosa Diatribe sobre o Livre Arbítrio, que Erasmo publicou em 1524.

Desidério Erasmo (c. 1466-1536) e Martinho Lutero (1483-1546) permanecem como dois nomes precursores doespírito moderno, e entre eles há algumas semelhanças. Esses dois intelectuais europeus protagonizaram no contexto explosivo, destinado a dissolver a unidade do mundo medieval. Havendo passado pela Ordem agostiniana, ambos vieram a rejeitar métodos hermenêuticos da Igreja Romana, bem como muitas de suas superstições e crendices. Ambos ofereceram grande contribuição à disseminação do texto bíblico em sua época. Detentores de enorme capacidade para o debate acadêmico, erudito, e partilhando de talento literário, ambos escreveram acerca do “livre arbítrio”, embora com uma diferença diametral: Erasmo, o humanista, defendendo-o; e Lutero, o reformador, condenando. Isto marcou uma ruptura definitiva entre os dois homens, que, anteriormente, ofereciam-se mútuo encorajamento. Desde o debate de Leipzig (1519), os caminhos de ambos vinham conduzindo a rumos diferentes.

Publicado inicialmente em 1525, A Escravidão da Vontade é um primor de composição polêmica. Nesta obra transparecem com bastante evidência a personalidade e a franqueza dos sentimentos de Lutero. A força lógica e persuasiva de seus argumentos revelam a mente treinada na disciplina da escolástica medieval. O estilo polêmico de Lutero era o da época em que viveu e traduz o vapor existente na atmosfera acadêmica de então. Na obra original (tanto mais do que no sumário publicado em português), há ironias, asperezas, ad hominems e alusões indiretas.

Não obstante, o leitor deve comparar o texto luterano muito mais com o bisturi de um resoluto cirurgião do que com a pena de um clínico em seu receituário. Na estima teológica de Lutero, o tratado erasmiano era uma obra da carne. Contendo uma anamnese mal feita, partia de um princípio falso e oferecia um placebo para uma ferida mortal. Lutero repudia o Diatribe de Erasmo expondo a doutrina bíblica do pecado original. Move-lhe o entendimento de que, sem um diagnóstico preciso acerca da enfermidade humana, não há como discernir de maneira apropriada o valor das boas novas do evangelho da graça de Cristo. Em sua réplica, Lutero procede a um honesto e rigoroso exame das Escrituras Sagradas, evidentemente preterido por Erasmo.

Foi com o entendimento da natureza essencial do evangelho que se abriu para Lutero a noção do cativeiro radical da vontade. Sem nenhuma dúvida, na doutrina que os teólogos reformados denominam de “depravação do homem” situa-se a pedra angular da Reforma. No coração da teologia de Lutero e da doutrina da justificação está a sua compreensão da depravação original e da pecaminosidade do homem – que ele conheceu muito bem, mesmo como um monge asceta na Ordem agostiniana. O reformador está muito bem qualificado para tratar do assunto da impiedade e da depravação.

O que é a verdadeira liberdade? Neste caso, vê-se também que o discurso sobre a condição servil da vontade não visa a outra coisa, se não ao discurso correto sobre a liberdade. Para Lutero, a livre vontade é um termo divino, e não cabe a ninguém, a não ser unicamente à majestade divina. Conceder ao ser humano tal atributo significaria nada menos do que atribuir-lhe a própria divindade, usurpando a glória do Criador. Lutero, assim, compreende que a pergunta pela liberdade da vontade no fundo é a pergunta pelo poder da vontade. Por isso mesmo, a livre vontade é predicado de Deus. É poder essencialmente específico do próprio Deus.

Lutero considerava A Escravidão da Vontade a sua melhor e mais útil publicação. O valor deste tratado é inestimável para quem deseja compreender a teologia da Reforma, e, tomando-se em consideração o atual contexto evangélico, talvez poucos livros há que sejam tão necessários. O atual ensino de muitos que se denominam “protestantes” está em maior acordo com os dogmas papistas, ou com as idéias de Erasmo, do que com os princípios dos Reformadores; analisado criticamente, tal ensino está em maior harmonia com os Cânones e Decretos do Concílio de Trento do que com as Confissões de Fé Protestantes e Reformadas.

Editora FIEL lançou uma edição de “Nascido Escravo“, que tive o privilégio de prefaciar. Trata-se de uma versão condensada e adaptada, facilitando o acesso ao clássico texto luterano. O leitor poderá encontrar neste pequeno livro algum resgate para estes dias em que muito tem sido perdido. Penso tratar-se de um meio de edificação e fortalecimento para todos quantos desejam ser melhor instruídos pelos oráculos de Deus!


Autor: Gilson Santos

Gilson Santos é Ministro Batista e pastor titular da Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos, SP, há mais de 20 anos. Graduado em História, Teologia e Psicologia, é pós-graduado em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É escritor no institutopoimenica.com e professor de disciplinas de Teologia Prática no Seminário Martin Bucer.

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