sexta-feira, 22 de novembro
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mulher de Ló

O pecado que a mulher de Ló cometeu

A mulher de Ló olhou para trás

Vou prosseguir falando sobre o pecado que a mulher de Ló cometeu.

A história de seu pecado é transmitida pelo Espírito Santo com simples e poucas palavras: “E a mulher de Ló olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal”. Nada além disso é informado. Algo sério é revelado a respeito dessa história. O resumo e a essência de sua transgressão repousam nessas poucas palavras: “A mulher de Ló olhou para trás”.

Esse pecado parece pequeno aos olhos de algum leitor deste capítulo? A falha da mulher de Ló lhe parece trivial para ser castigada com tamanha punição? Ouso dizer que esse é o sentimento despertado em alguns corações. Dê-me sua atenção enquanto raciocino com você a respeito desse assunto. Existe algo mais naquele olhar do que se pode perceber à primeira vista: há mais coisas implícitas nele do que foram enunciadas. Preste atenção e você poderá ouvi-las.

  1. Aquele olhar era algo insignificante, mas revelava o verdadeiro caráter da mulher de Ló. As pequenas coisas de modo geral revelam mais sobre a mente de um homem do que as grandes coisas podem revelar, e pequenos sintomas, com frequência, são sinais de doenças letais e incuráveis. O fruto que Eva comeu era algo pequeno, mas comprovou que ela havia decaído de um estado de inocência e que se tornara uma pecadora. Uma rachadura em uma construção parece uma coisa pequena, mas isso prova que o alicerce está cedendo e que toda a estrutura não é segura. Uma simples tosse pela manhã parece uma doença sem importância, mas, às vezes, é uma evidência de uma fraqueza no organismo e leva a uma tuberculose, ao enfraquecimento e à morte. A palha pode mostrar a direção em que o vento sopra, e um olhar pode mostrar a condição corrupta do coração de um pecador (Mt 5.28).
  2. Aquele olhar era algo insignificante, mas falava sobre a desobediência interior da mulher de Ló. O mandamento do anjo foi direto e inconfundível: “Não olhes para trás” (Gn 19.17). A mulher de Ló recusou-se a obedecer a este mandamento. Mas o Espírito Santo diz “que o obedecer é melhor do que o sacrificar” e que “a rebelião é como o pecado de feitiçaria” (1Sm 15.22-23). Quando Deus fala de forma clara pela sua Palavra ou pelos seus mensageiros, a obrigação do homem fica evidente.
  3. Aquele olhar era algo insignificante, mas falava da incredulidade soberba da mulher de Ló. Ela parecia duvidar que Deus fosse realmente destruir Sodoma: parece que ela não acreditava que havia algum perigo ou alguma necessidade para aquela fuga apressada. Entretanto, “sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6). No momento em que um homem começa a pensar que sabe mais do que Deus, e que Deus não tem a intenção de fazer algo quando faz uma ameaça, sua alma corre grande perigo. Quando não podemos ver as razões por detrás do modo de agir de Deus, nossa obrigação é esperar em paz e crer.

Aquele olhar era algo insignificante, mas falava do amor secreto que a mulher de Ló tinha pelo mundo. Seu coração estava em Sodoma, embora seu corpo estivesse fora da cidade. Ela havia deixado suas paixões para trás ao fugir de seu lar. Seus olhos voltaram-se para o lugar onde estava o seu tesouro, assim como a agulha da bússola se volta para o polo. E este foi o ponto crucial de seu pecado. “A amizade do mundo é inimiga de Deus” (Tg 4.4). “Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele” (1Jo 2.15).

Peço uma atenção especial por parte de meus leitores para esse ponto de nosso assunto. Creio que ele é o ponto para o qual o Senhor Jesus, de modo particular, pretende dirigir nossa mente. Creio que Ele quer que observemos que a mulher de Ló estava perdida por ter olhado para trás, em direção ao mundo. Houve um tempo em que sua fé foi satisfatória e plausível, mas, na verdade, ela nunca abandonou o mundo. Houve um tempo em que ela parecia estar a caminho da segurança, mas, mesmo então, os seus pensamentos mais escondidos e profundos estavam nas coisas do mundo. O enorme perigo que o mundanismo traz é a lição que o Senhor Jesus quer que aprendamos. Oh! que todos nós possamos ter olhos para ver e coração para compreender!

Creio que nunca houve um tempo em que as advertências contra o mundanismo fossem tão necessárias para a igreja de Cristo como no presente momento. Dizem que toda época tem a sua própria epidemia de doença; a epidemia a que as almas dos crentes estão sujeitas no momento é o amor ao mundo. Esta é a “peste que se propaga nas trevas”, e a “mortandade que assola ao meio-dia” (Sl 91.6). Ela “a muitos feriu e derribou; e são muitos os que por ela foram mortos” (Pv 7.26). Quero levantar uma voz de advertência e tentar despertar a consciência dormente de todo aquele que professa ter uma religião. Quero exclamar em alta voz: “Lembrem-se do pecado da mulher de Ló”. Ela não era assassina, não era adúltera, não era ladra; porém, ela professava ter uma religião e “olhou para trás”.

Há milhares de pessoas batizadas nas igrejas que são contrárias à imoralidade e à infidelidade, mas que ainda são vítimas do amor ao mundo. Há milhares de pessoas que correm bem por uma estação e dão a impressão de que vão chegar ao céu, mas que, algum tempo depois, desistem da corrida e voltam as costas para Cristo completamente. E o que fez com que elas desistissem? Elas descobriram que a Bíblia não era a verdade? Elas descobriram que Jesus falhou em cumprir sua palavra? Não, de forma alguma. Elas contraíram a doença contagiosa: elas estão infectadas com amor ao mundo. Rogo a todo ministro evangélico verdadeiro e sincero que lê este livro; peço a ele que olhe para sua congregação. Rogo a todo cristão que já é crente há alguns anos: peço a ele que olhe para seu círculo de amizades. Estou certo de que falo a verdade. Está mais do que na hora de lembrarmos do pecado da mulher de Ló.

  1. Quantos filhos de famílias religiosas começam bem e terminam mal! Nos dias de sua infância, eles parecem ser repletos de religiosidade. Eles podem repetir textos e hinos em abundância; eles têm sentimentos espirituais e convicção de pecado; professam ter amor ao Senhor Jesus e desejam buscar o céu; têm prazer em ir à igreja e ouvir os sermões; dizem coisas que seus pais carinhosos guardam no coração como indicações da graça; fazem coisas que levam seus parentes a dizer: “Que virá a ser, pois, este menino?” Mas é lamentável como sua bondade desvanece como a nuvem da manhã e desaparece como o orvalho! O menino torna-se um jovem e com nada mais se importa, além de divertimentos, campos de esportes, festas e exageros. A menina torna-se uma mulher e não se importa com mais nada, além de roupas, companhias animadas, leitura de romances e festas. E onde está aquela espiritualidade que uma vez pareceu tão promissora? Ela se foi; está enterrada; foi inundada pelo amor ao mundo. Eles seguem as pegadas da mulher de Ló. Eles olham para trás.
  2. Quantas pessoas casadas há que aparentemente desempenham bem sua religião, até que seus filhos começam a crescer e elas abandonam tudo! Nos primeiros anos de seu casamento, elas parecem seguir a Cristo com diligência e dão testemunho de uma boa confissão de fé. Participam da pregação do evangelho com regularidade; são frutíferas nas boas obras; nunca são vistas na companhia de pessoas fúteis e dissolutas. Sua fé e sua prática são sadias e caminham lado a lado. Mas é lamentável como a ferrugem espiritual, geralmente, sobrevém àquela casa quando a jovem família começa a envelhecer, e os filhos e as filhas precisam progredir na vida. Um fermento de mundanismo começa a aparecer em seus hábitos, em suas vestimentas, em suas diversões e na maneira como usam o tempo. Eles não são mais tão rigorosos quanto ao tipo de companhias que mantém, e nem quanto aos lugares que visitam. Onde está a firme linha divisória que eles antes observavam? Onde está a inabalável abstinência dos divertimentos mundanos que uma vez marcaram sua trajetória? Tudo é esquecido. Tudo é deixado de lado, como um almanaque velho. Uma mudança lhes sobrevém; o espírito do mundo toma posse de suas vidas. Eles seguem as pegadas da mulher de Ló. Eles olham para trás.
  3. Quantas mulheres jovens parecem amar a religião resoluta até que chegam aos vinte, vinte e um anos, e deixam tudo! Até esse ponto de suas vidas, sua conduta em relação às questões religiosas é tudo aquilo que se pode desejar. Elas mantêm hábitos de oração em particular; leem a Bíblia com diligência; visitam os pobres, quando têm oportunidade; ensinam na escola dominical, quando é possível; contribuem com as necessidades materiais e espirituais dos pobres; gostam de amigos religiosos; amam falar sobre assuntos religiosos; escrevem cartas cheias de expressões e experiências religiosas. Mas é lamentável a frequência com que elas demonstram ser tão instáveis como a água e são arruinadas pelo amor ao mundo! Pouco a pouco, elas vão apostatando e perdem seu primeiro amor. Pouco a pouco, as “coisas visíveis” empurram as “coisas invisíveis” para fora de suas mentes, e semelhante a uma praga de gafanhotos, devoram todo o verde de suas almas. Passo a passo, recuam da posição decidida que uma vez sustentaram. Elas deixam de ser zelosas pela sã doutrina; fingem que acham que é “falta de amor” pensar que uma pessoa possui mais religião do que a outra; elas inventam que tentar se separar dos costumes da sociedade é um ato de “exclusão”. Pouco tempo depois, entregam seus afetos a um homem que não tem a menor pretensão de ter uma religião. No fim, elas abandonam os últimos vestígios de seu cristianismo, tornando-se filhas do mundo por completo. Elas seguem as pegadas da mulher de Ló. Elas olham para trás.
  4. Quantos congregantes há em nossas igrejas que, durante algum tempo foram zelosos e fervorosos em professar sua fé e agora se tornaram entorpecidos, formais e frios! Houve um tempo em que não parecia haver alguém mais animado em sua religião do que eles; ninguém era tão diligente em exercer os meios da graça quanto eles; ninguém era tão ansioso para promover a causa do evangelho e tão pronto para toda boa-obra; ninguém era tão grato pelas instruções espirituais; ninguém aparentemente tinha tanto desejo de crescer na graça. Mas agora, infelizmente, tudo parece ter mudado! O amor pelas “outras coisas” tomou posse de seus corações e sufocou a boa semente da Palavra. O dinheiro do mundo, as recompensas do mundo, a literatura do mundo, as honras do mundo agora têm o primeiro lugar em suas afeições. Converse com eles e você ficará sem respostas quanto às coisas espirituais. Note a sua conduta diária e você não verá zelo pelo reino de Deus. Eles de fato possuem uma religião, mas não é mais uma religião viva. A primavera de sua religião anterior secou e se foi; o fogo de sua máquina espiritual se apagou e esfriou; o mundo extinguiu a chama que uma vez flamejara de forma tão intensa. Eles têm seguido as pegadas da mulher de Ló. Eles têm olhado para trás.
  5. Quantos ministros há que trabalham arduamente em sua profissão de fé por alguns anos e depois se tornam preguiçosos e indolentes por causa do amor a este mundo presente! No início do ministério, eles de boa vontade se gastam e se deixam gastar por Cristo; eles instam quer seja oportuno, quer não; sua pregação é viva e suas igrejas estão cheias. Suas igrejas são bem cuidadas; estudos em pequenos grupos, reuniões de oração, visitas de casa em casa: estes são os seus deleites semanais. Mas é lamentável a frequência com que eles “tendo começado no espírito”, agora estão “na carne” e, de modo semelhante a Sansão, tiveram sua força removida no colo daquela Dalila; o mundo! Eles preferem uma vida rica; casam-se com uma mulher mundana; ficam inchados de orgulho e negligenciam o estudo e a oração. Uma geada intensa queima os botões da espiritualidade, que antes pareciam tão promissores. Sua pregação perde o fervor e o poder; seus trabalhos semanais começam a diminuir cada vez mais; as companhias com quem se misturam tornam-se cada vez menos selecionadas; o tom de suas conversas torna-se mais mundano. Eles param de desconsiderar a opinião do homem; eles se embebem de um medo mórbido dos “pontos de vista extremistas” e se enchem de um temor cauteloso de ofender os outros. E no final, o homem que, durante algum tempo, parecia ser o verdadeiro sucessor dos apóstolos e um bom soldado de Cristo está apegado à borra do seu vinho (Sf 1.12), como se fosse um jardineiro, um agricultor ou alguém que janta em um restaurante, através de quem ninguém é confrontado e ninguém é salvo. Sua igreja esvazia-se pela metade; sua influência definha; o mundo o deixa de pés e mãos atados. Ele tem seguido as pegadas da mulher de Ló. Ele tem olhado para trás.[1]

É triste escrever sobre estas coisas, entretanto, é muito mais triste vê-las. É triste observar como cristãos podem cegar sua consciência através de argumentos plausíveis sobre esse assunto e, na verdade, defender o mundanismo ao falarem “das obrigações que seus cargos requerem”, das “cortesias da vida” e da necessidade de terem uma “religião agradável”.

É triste ver como tantos navios imponentes partem para a longa travessia da vida com todas as perspectivas de sucesso, e quando a rachadura deste mundanismo rompe seus cascos, submergem com toda a sua carga, ao mesmo tempo em que avistam com clareza o porto seguro. O mais triste de tudo é observar como muitos, por causa deste amor ao mundo, iludem a si mesmos com a ideia de que está tudo bem com sua alma, quando na verdade, tudo está errado. Eles já têm os seus cabelos grisalhos aqui e ali, mas não percebem isso. Eles começam como Jacó, Davi e Pedro, e provavelmente terminam com Esaú, Saul e Judas Iscariotes. Começam como Rute, Ana, Maria e Pérside e, provavelmente, terminam como a mulher de Ló.

Guarde-se de ter uma religião de coração dividido. Cuidado para não seguir a Cristo por motivos secundários, para agradar parentes e amigos, para manter os costumes do lugar ou da família com quem você reside, para ser respeitável e ter a reputação de ser uma pessoa religiosa. Siga a Cristo por causa de Cristo, se é que você o segue. Seja constante, seja verdadeiro, seja honesto, seja sensato, não tenha um coração dividido. Se é que você tem uma religião, deixe que sua religião seja verdadeira. Preste atenção para não pecar o pecado da mulher de Ló.

Guarde-se de qualquer suposição de que você poderá ir longe na religiosidade e na tentativa secreta de manter um bom relacionamento com o mundo. Não quero que nenhum leitor se torne um eremita, um monge ou uma freira; quero que cada um cumpra a sua verdadeira obrigação naquela posição para a qual foi chamado. Entretanto, quero persuadir a todo cristão que deseja ser feliz sobre a imensa importância de não fazer acordos entre Deus e o mundo. Não tente fazer uma barganha injusta, como se você desejasse dar a Cristo o mínimo possível de seu coração e manter o máximo possível das coisas desta vida. Tome cuidado para não se frustrar, querendo ganhar além do que é possível, e acabar perdendo tudo.

Ame ao Senhor com todo o seu coração e mente, e alma, e força. Busque primeiro o reino de Deus e creia que todas as outras coisas lhe serão acrescentadas. Preste atenção para não se tornar uma cópia do personagem criado por John Bunyan, o Sr. Duas-Caras. Por causa de sua felicidade, por causa de sua utilidade, por causa de sua segurança, por causa de sua alma, guarde-se do pecado da mulher de Ló. Oh, esta é uma palavra solene de nosso Senhor Jesus Cristo: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lc 9.62).


 

O trecho abaixo foi extraído com permissão do livro Santidade, de J.C. Ryle, Editora Fiel.

 

[1] “Lembre-se do Dr. Dodd! Eu mesmo o ouvi dizer ao seu próprio rebanho, para quem ele dava estudo em sua casa, que tinha sido obrigado a abandonar o método de ajudar as almas deles porque isso o expunha à vergonha. Ele abandonou o método e foi decaindo em submissão à sua natureza corrupta; e morreu num estado de tamanha vergonha!” – Ele morreu enforcado por falsificação de assinatura (Venn, Henry. The Life and Letters of Henry Venn with a Memoir by John Venn. Edinburgh: Banner of Truth, 1993).


Autor: J. C. Ryle

J. C. Ryle (1816-1900) foi bispo da Igreja da Inglaterra, em Liverpool. Conhecido por sua erudição e piedade, Ryle era também um escritor prolífico, um pregador vigoroso e um ministro fiel. Dentre suas obras, a Editora Fiel tem publicado o "Santidade" e a série de meditações nos quatro evangelhos.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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