sexta-feira, 22 de novembro
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A doutrina da autoridade das escrituras na tradição reformada

A Confissão de Fé de Westminster contém uma declaração majestosa sobre a autoridade da Escritura:

A autoridade da Escritura Sagrada , razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou Igreja, mas depende somente de Deus (que é a própria verdade), o seu autor; e, portanto, deve ser recebida, porque é a Palavra de Deus. Nós podemos ser movidos e compelidos, pelo testemunho da Igreja, a um alto e reverente apreço pela Escritura Sagrada; e a sublimidade do assunto, a eficácia da sua doutrina, a majestade do estilo, a concordância de todas as partes, o escopo do seu todo (que é dar toda a glória a Deus), a plena revelação que faz do único caminho da salvação do homem, as suas muitas outras excelências incomparáveis e sua completa perfeição, são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser a Palavra de Deus; ainda assim, não obstante, a nossa plena persuasão e certeza de sua verdade infalível e autoridade divina provêm da operação interna do Espírito Santo, testemunhando por meio da Palavra e com a Palavra em nossos corações. (CFW 1.4-5)

Essas palavras refletem o consenso do pensamento das Igrejas Reformadas sobre como devemos entender a autoridade da Escritura. Em suma, a autoridade da Escritura não depende da decisão ou decreto de qualquer igreja ou qualquer homem. Pelo contrário, a Escritura é autoritativa porque é a Palavra do Deus vivo.

A doutrina reformada da autoridade das Escrituras
O mesmo ensino é encontrado nos escritos dos primeiros teólogos reformados e nas primeiras confissões reformadas. João Calvino (1509-64), por exemplo, explica que “um erro muito pernicioso prevalece amplamente de que a Escritura tem apenas tanto peso quanto lhe é concedido pelo consentimento da igreja” (Institutas 1.7.1). Ele está falando aqui sobre a opinião católica romana predominante do século dezesseis. Calvino argumenta antes que a Escritura é autoritativa porque “Deus fala pessoalmente nela” (1.7.4). William Whitaker (1548-1595), em suas excelentes Disputations on Holy Scripture [Discussões sobre a Escritura Sagrada] (1588), descreve de modo conciso a visão das Igrejas Reformadas sobre esse assunto:

O resumo de nossa opinião é que a Escritura é autopistos, ou seja, tem toda a sua autoridade e crédito a partir de si mesma; deve ser reconhecida, deve ser recebida, não somente porque a igreja tem assim determinado e ordenado, mas porque ela provém de Deus; e nós certamente sabemos que ela provém de Deus, não por meio da igreja, mas pelo Espírito Santo.

As primeiras confissões reformadas estão unidas ao ensinar o mesmo ponto de vista. O Artigo 5 da Confissão Francesa (1559) diz a respeito da Escritura: “Cremos que a Palavra contida nesses livros procedeu de Deus, e recebe a sua autoridade somente dele, e não dos homens”. O Artigo 19 da Confissão Escocesa (1560) afirma:

Como cremos e confessamos que as Escrituras de Deus são suficientes para instruir e tornar o homem de Deus perfeito, assim afirmamos e confessamos que a autoridade das Escrituras procede de Deus e não depende de homens nem de anjos. Afirmamos, portanto, que aqueles que alegam que as Escrituras não têm outra autoridade senão a que receberam da igreja, são blasfemos contra Deus e prejudiciais à verdadeira igreja.

O Artigo 5 da Confissão Belga (1561) explica a autoridade da Escritura do mesmo modo:

Recebemos todos esses livros, e apenas esses, como santos e canônicos, para a regulação, fundamento e confirmação da nossa fé; acreditando, sem dúvida, em todas as coisas contidas neles, não tanto porque a igreja os recebe e aprova como tais, porém mais especialmente porque o Espírito Santo testemunha em nossos corações que eles provêm de Deus, do que eles carregam a evidência em si mesmos. Pois mesmo os cegos são capazes de perceber que as coisas preditas neles se cumprem.

A Segunda Confissão Helvética (1566) explica que as Sagradas Escrituras “têm autoridade suficiente a partir de si mesmas, não de homens. Porque o próprio Deus falou aos pais, aos profetas, aos apóstolos, e ainda fala a nós pelas Escrituras Sagradas”.

Vemos em todos esses a estreita ligação entre a inspiração da Escritura e a autoridade da Escritura. Cada um desses teólogos e confissões observa corretamente que a Escritura é a Palavra de Deus. É precisamente porque a Escritura é “inspirada por Deus” (2 Timóteo 3.16) que é autoritativa. Não há e não pode haver autoridade superior a Deus. A Escritura carrega a autoridade de Deus, a autoridade suprema, porque a Escritura é a própria Palavra de Deus.

Por que os teólogos e as confissões reformadas do século dezesseis tiveram que se esforçar por esse ponto? A Igreja Católica Romana não cria que a Escritura é a Palavra de Deus? Sim, Roma cria e ensinava que a Escritura é a Palavra de Deus, mas diante dos desafios levantados pelos Reformadores, Roma acusou os Reformadores de inconsistência. “Vocês, protestantes, apelam para a Escritura”, eles diziam, “mas vocês não têm o direito de fazê-lo, porque nem saberiam o que é a Escritura à parte da declaração da igreja”.

Alguns dos apologistas católicos romanos do século dezesseis foram mais moderados na maneira como explicaram a sua visão. Outros, como observado por Whitaker, foram perturbadoramente grosseiros. O teólogo romano Johann Eck, por exemplo, afirmou que “a igreja é mais antiga do que as Escrituras, e que a Escritura não é autêntica, senão pela autoridade da igreja”. Albert Pighius afirma de modo semelhante: “Toda a autoridade que a Escritura agora tem para conosco depende necessariamente da autoridade da igreja”. O cardeal Stanislaus Hosius chegou a dizer: “As Escrituras têm somente tanta força quanto as fábulas de Esopo, se destituídas da autoridade da Igreja”. Os Reformadores entenderam corretamente que essas são palavras de combate.

Disputa sobre o Cânon
O debate do século dezesseis sobre a relação entre a autoridade da Escritura e a autoridade da igreja tornou-se focado em grande parte na questão do cânon bíblico. A Escritura é necessária para que os cristãos conheçam a vontade de Deus a respeito do que devemos crer e o que devemos fazer. Roma argumentou, porém, que sem a autoridade prévia de uma igreja infalível, não saberíamos quais livros pertencem ao cânon da Escritura e quais não. Não temos um índice inspirado, disseram os apologistas romanos. Em outras palavras, Roma afirmou: vocês, protestantes, não podem apelar às Escrituras se não sabem o que é a Escritura, e somente a Igreja Católica Romana tem autoridade para dizer o que é a Escritura. Apenas Roma pode fornecer um índice de conteúdo infalível. Assim, a autoridade da Escritura repousa sobre a autoridade da igreja.

Essa é uma crítica desafiadora. É uma crítica particularmente desafiadora para aqueles protestantes que rejeitaram a doutrina reformada das Escrituras e optaram por uma visão da autoridade bíblica que nega a autoridade subordinada, mas real da igreja e dos credos. As raízes dessa visão são encontradas na Reforma Radical. Os Reformadores Radicais, embora diferindo entre si em vários detalhes, insistiram que a Escritura não é somente a única autoridade infalível, mas a única autoridade total. Não apenas as tradições medievais não bíblicas foram desconsideradas, mas a tradição no bom senso da regula fidei, o testemunho dos pais, a interpretação tradicional da Escritura e o julgamento corporativo da igreja também foram desprezados.

Em outras palavras, os Reformadores Radicais defendiam o que pode ser chamado de nuda Scriptura, em oposição à doutrina dos Reformadores Magisteriais de sola Scriptura. Os Reformadores Magisteriais, como Martinho Lutero, João Calvino e Martin Bucer, insistiram que a Escritura era a única fonte de revelação especial, a única autoridade infalível, mas que devia ser interpretada na e pela igreja de acordo com a regula fidei (a “regra de fé” encontrada nos credos da igreja). Os Reformadores Magisteriais não rejeitaram a autoridade da igreja e os credos entendidos adequadamente como autoridades subordinadas. O que eles rejeitaram foi qualquer tentativa de colocar a autoridade da igreja ou dos credos no mesmo nível que a autoridade de Deus.

Mas como os protestantes defensores da sola Scriptura responderam ao desafio de Roma? Primeiro, eles apontaram que a reivindicação de Roma à autoridade infalível era invalidada devido ao fato de que o cânon do Antigo Testamento de Roma estava incorreto. Roma argumentou que o cânon do Antigo Testamento deveria incluir os chamados livros apócrifos. Os livros apócrifos foram incluídos na tradução Vulgata Latina da Bíblia porque eles foram encontrados em edições posteriores da Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento. Jerônimo (347-420), que traduziu boa parte da Vulgata, traduziu alguns desses livros, mas argumentou que eles não eram canônicos, porque não estavam incluídos no Antigo Testamento hebraico. Com o tempo, no entanto, eles foram incluídos na maioria das edições da Vulgata.

Precisamos lembrar que a Septuaginta foi concluída em algum momento no início do século II a.C. Os livros apócrifos foram todos escritos entre 185 a.C. e 100 d.C. Isso significa que a maioria (se não todos) dos livros apócrifos foram escritos muito depois que a Septuaginta foi concluída. Os protestantes observaram que o Antigo Testamento hebraico nunca havia contido os livros apócrifos adicionais encontrados no Antigo Testamento Católico Romano. Em vez disso, os livros no Antigo Testamento hebreu correspondiam exatamente aos livros encontrados no Antigo Testamento usado ??pelos protestantes. Somente a numeração e ordenação dos livros é diferente.

A segunda observação feita pelos protestantes contra a alegação de Roma de que uma igreja infalível é necessária se quisermos ter um cânon funcionalmente autoritativo é que Israel não era infalível. Por que isso importa? Porque Deus confiou os oráculos do Antigo Testamento aos judeus (Romanos 3.1-2). Apesar do fato reconhecido de que os judeus não eram infalíveis, eles conseguiram, por mais de mil anos, preservar o cânon da Escritura do Antigo Testamento. Jesus e os apóstolos usaram esse cânon do Antigo Testamento sem dar qualquer indicação de que os judeus haviam falhado em realizar essa tarefa para a qual foram escolhidos. Se uma igreja infalível não era necessária para o estabelecimento e preservação do cânon antes de Cristo, uma igreja infalível não é necessária para o mesmo agora.

A questão no centro do debate entre Roma e os protestantes a respeito do cânon e da autoridade da Escritura pode ser afirmada da seguinte forma (usando a terminologia de Michael Kruger): O cânon das Escrituras é determinado pela comunidade ou é auto-autenticado? De acordo com Roma, a autoridade da Escritura depende da autoridade da igreja. O problema mais fundamental dessa visão, por mais que possa ser cuidadosamente pormenorizada e qualificada, é que inescapavelmente coloca de modo inevitável a autoridade de Deus sob a autoridade da igreja. Isso inverte completamente a verdadeira posição das coisas. Se acreditamos na autoridade da Escritura, de acordo com Roma, devemos assumir a autoridade da igreja. Mas por que devemos aceitar a autoridade da igreja? Ela é auto-autenticada? Não, diz Roma, e ela apela às Escrituras para estabelecer a autoridade da igreja, assim como ela apela à igreja para estabelecer a autoridade da Escritura. A natureza circular desse apelo foi apontada desde a Reforma.

Dizer que o cânon e a autoridade da Escritura são auto-autenticados é afirmar o que as confissões reformadas afirmam. Para usar as palavras de William Whitaker, é dizer que “a Escritura é autopistos”. Ela tem “toda a sua autoridade e crédito de si mesma”. Por quê? Porque é a Palavra do Deus vivo, e Deus não precisa apelar à igreja para estabelecer a sua própria autoridade soberana inerente. Deus é Deus. A igreja não é Deus.

Então, como a igreja veio a reconhecer os livros corretos e apenas os livros corretos? O próprio Jesus nos dá a resposta quando diz: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (João 10.27). Como Roger Nicole apontou, a melhor maneira de descrever o modo como conhecemos o cânon é “o testemunho do Espírito Santo dado corporativamente ao povo de Deus”. O reconhecimento dos livros canônicos é devido à ação do Espírito Santo capacitando o povo de Deus a ouvir a sua voz.

Rejeições contemporâneas da autoridade bíblica
Ainda que os católicos romanos e protestantes tradicionais disputassem pela relação entre a autoridade das Escrituras e a autoridade da igreja, eles concordavam que as Escrituras eram a Palavra de Deus inspirada e infalível. Desde o Iluminismo, essa suposição está sob forte ameaça. Em vez da Escritura e/ou da igreja, a razão humana tornou-se o árbitro da verdade. Os estudiosos influenciados pela filosofia do Iluminismo começaram a atacar a veracidade dos relatos bíblicos. Os milagres foram rejeitados. A resposta de alguns na igreja foi reformular o Cristianismo de uma forma que se acreditava ser mais atraente para os europeus pós-iluministas. Friedrich Schleiermacher, por exemplo, fundamentou a teologia na experiência e no sentimento humanos, e não na autoridade das Escrituras. O sentimento subjetivo, ele cria, é imune aos argumentos dos críticos.

No século vinte, os ataques liberais contra a autoridade da Escritura continuaram, o que ocasionou intensas batalhas em várias igrejas. Na década de 1920, J. Gresham Machen resumiu o pensamento de muitos quando declarou que o liberalismo “não é apenas uma religião diferente do Cristianismo, mas pertence a um tipo de religiões totalmente diferente”. O liberalismo teológico foi criticado não apenas por protestantes tradicionais como Machen, mas também por estudiosos neo-ortodoxos. Karl Barth, por exemplo, dizia sobre as opiniões de Schleiermacher que “ninguém pode falar sobre Deus simplesmente falando sobre o homem em voz alta”. E H. Richard Niebuhr é conhecido por seu resumo do evangelho liberal: “Um Deus sem ira trouxe homens sem pecado a um reino sem julgamento por meio das ministrações de um Cristo sem cruz”.

Embora eruditos neo-ortodoxos como Barth e Niebuhr tenham visto corretamente os perigos mortais do liberalismo teológico, eles também tinham um entendimento falho da autoridade bíblica. Para Barth, é incorreto identificar a Escritura com a Palavra de Deus. Em vez disso, a Bíblia “deve tornar-se continuamente a Palavra de Deus”. A Bíblia se torna a Palavra de Deus quando Deus livre e soberanamente escolhe usá-la desse modo. Ao introduzir essa distinção conceitual entre a Palavra de Deus e a Bíblia, Barth (e os estudiosos neo-ortodoxos que o seguiram) esvaziaram a própria Bíblia de qualquer autoridade divina inerente. A influência de teólogos liberais como Schleiermacher e teólogos neo-ortodoxos como Barth continua até hoje, em várias formas.

Conclusão
Quando confrontado por Satanás e por outros adversários, Jesus Cristo repetidamente apelou às Escrituras como a autoritativa Palavra de Deus. Não havia dúvida na mente de Jesus de que aquilo que Moisés disse, Deus disse; de que aquilo que os profetas disseram, Deus disse. Para Jesus, as palavras “está escrito” resolviam o argumento. Como seguidores de Cristo, devemos ter a mesma atitude que Jesus teve em relação à Escritura. Toda a Escritura é inspirada por Deus. É theopneustos, “soprada por Deus”. Quando ouvimos as Escrituras, ouvimos a própria voz do Deus Todo-Poderoso. Não existe maior autoridade.

Tradução: Camila Rebeca Teixeira

Revisão: André Aloísio Oliveira da Silva

Original: What We’ve Received


Autor: Keith Mathison

Dr. Keith Mathison é editor associado da Tabletalk magazine, deão e professor de Teologia Reformada na Reformation Bible College em Sanford, Florida e autor do livro From Age to Age: The Unfolding of Biblical Eschatology.

Parceiro: Ministério Ligonier

Ministério Ligonier
Ministério do pastor R.C. Sproul que procura apresentar a verdade das Escrituras, através diversos recursos multimídia.

Ministério: Ministério Fiel

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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