sábado, 28 de setembro
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Israel e o repouso na terra

“Repouso” é o termo mais utilizado em Josué para descrever a experiência de Israel quando obteve controle inicial da terra (e não a desapropriação total dos cananeus, algo que o Antigo Testamento nunca afirma).[i] Por definição, o repouso não existe e não pode ser desfrutado fora da terra, seja antes de entrar em Canaã (quando Israel estava no Egito), seja quando as maldições da aliança alcançaram seu apogeu no exílio (Dt 28.65). Deuteronômio prevê a concessão de repouso em relação aos inimigos de Israel depois de completada a conquista, seguida pela designação feita por Deus de um local central onde Israel deveria adorá-lo (12.10-14). O livro de Josué deixa claro que as duas coisas aconteceram: Israel teve repouso dos seus inimigos, e o culto foi centralizado — primeiro, em Siló e, depois (aparentemente), em Siquém. Mesmo então, quando o local centralizado de culto tinha sido escolhido, grande parte da terra ainda precisava ser totalmente subjugada ( Js 23.7, 12; Jz 1.1). Depois da morte de Josué, as coisas não melhoraram, e vários séculos se passaram antes que o repouso de Israel na terra chegasse à sua realização mais completa no reinado dos monarcas davídicos e com a construção do templo em Jerusalém (2Sm 7.1, 11; 1Rs 5.4; 8.56).[ii]

O que é “repouso” em Josué?

No livro de Josué, “repouso” é uma pré-condição para a vida de obediência na terra, expressa especialmente pela adoração exclusiva a Yahweh em seu local designado de culto. Essa realidade sugere que o “repouso” em Josué não exibe o caráter definitivo que algumas outras apresentações bíblicas do tema têm,[iii] o que se deve simplesmente aos labores diferentes dos quais se têm que repousar. Em Josué e nos livros de teologia similar, trata-se particularmente do repouso da guerra,[iv] enquanto, no mundo do pensamento sacerdotal, o repouso é do próprio trabalho ou é simplesmente equiparado ao descanso de Deus.[v]

Esse ponto é suficientemente importante para merecer uma abordagem mais aprofundada. Em Josué, o “repouso”, normalmente baseado na raiz נוַח, é uma pré-condição para a vida na terra (1.13), em vez de um objetivo em si. Ele é, inicialmente, prometido como uma tomada de posse da terra (1.15; cf. 22.4) e é dado aos israelitas por Deus (21.44; 22.4; 23.1) quando eles ganham controle inicial sobre parte da terra (cf. 18.1-2; 20.1-9). O resto é definido explicitamente como a ausência de guerra (“em redor”, 21.44; “de todos os seus inimigos em redor”, 23.1).[vi] Não é o caso de a obediência de Israel produzir o repouso, mas de Deus o conceder em cumprimento às suas promessas, essencialmente a despeito do comportamento de Israel.[vii]

A conexão intrabíblica mais importante desse tema de “repouso dos inimigos na terra” é provavelmente o Éden, que, em si, não é o mesmo que o descanso escatológico em Gênesis 2.1-3.[viii]  O descanso escatológico é, em vez disso, a recompensa prometida pela obediência por parte do primeiro casal que viveu no Éden. Da mesma forma, não podemos equiparar a posse da terra em Josué com o descanso escatológico; a conexão apropriada é Éden-terra. Éden e Canaã têm a mesma função teológica como o lugar onde o povo de Deus deve demonstrar sua fidelidade a ele e, depois de completar sua provação com sucesso, entrar na posse completa do bem prometido — vida eterna no caso da obediência no Éden, bênção total na terra no caso da aliança do Sinai.

Tragicamente, nos dois casos, a desobediência humana levou à expulsão da parte desobediente de seu lugar de residência e à perda do direito à bênção prometida.

Outros livros bíblicos confirmam que a apresentação do repouso de Josué como a ausência de conflito com outras nações é distinta de um descanso escatológico que é verbalmente idêntico, mas semanticamente diferente (e.g., Sl 81.13-16; 95.1-11). Embora distintas, essas duas concepções de descanso são complementares e conectadas. A conexão entre as duas aparece na ênfase de Josué em servir a Yahweh. O repouso na terra é uma pré-condição para a vida de obediência ali, e a obediência leva ao descanso soteriológico, o que, por fim, se conecta com o descanso do próprio Deus em Gênesis 2. Os dois tipos de repouso, portanto, movem-se na mesma direção, mas devem permanecer distintos na nossa teologia bíblica.[ix]

A teologia do repouso de Josué e a Teologia Bíblica

À luz do debate anterior, podemos dizer que o repouso em Josué é importante, não por sua relação orgânica com o descanso divino, mas em razão de seu lugar na tríade obediência-justificação-vida e na tríade pecado-condenação-morte.[x] Essas tríades se enquadram bem na teologia de Josué, já que apresentam o repouso na terra, livre da presença das nações enquanto fonte de tentação, como o contexto para o serviço obediente a Yahweh. As Escrituras correlacionam não o repouso na terra, que é o contexto da obediência, mas a obediência em si com o descanso soteriológico, que se mistura com o descanso do próprio Deus em Gênesis 2 (cf. Nm 14; Sl 95). Para desenvolver uma ideia anteriormente mencionada, é notável que (1) tanto o Éden quanto a terra de Israel foram, de alguma forma, santificados pela presença de Deus, fosse ela ocasional no jardim, fosse mais constante em Canaã; que (2) a obediência é uma condição para se continuar a residir em ambos; e que (3) a obediência leva à vida eterna (no caso do Éden) ou a bênçãos que a simbolizam (no caso de Canaã).[xi]

As mudanças bíblico-teológicas que acompanham a vinda de uma Nova Aliança “melhor” são vistas claramente na substituição da terra no Novo Testamento por algo mais próximo de sua figura escatológica. Goldsworthy expressa essa ideia de maneira sucinta: “Ao ser o lugar onde Deus encontra seu povo, [ Jesus] cumpre o significado da terra”. [xii] Vos, assim, afirma que o “centro gravitacional” dos cristãos agora se encontra fora deste mundo, em Cristo, e os novos céus e a nova terra, com Cristo no centro, um dia constituirão o cumprimento total do tema da terra, que é tão importante no livro de Josué.[xiii]


[i] Um resumo suavizado da apresentação bíblica da “conquista” vem de Alan Millard: “Israel entrou em Canaã a partir do Leste sob Josué, que liderou uma série de ataques-relâmpago, os quais quebraram a oposição local. Então, as gerações seguintes se espalharam gradualmente pela terra, tomando alguns lugares, na maioria das vezes se estabelecendo junto com os cananeus em cidades existentes e colonizando o interior. É nesse processo que aprendemos sobre tribos específicas em áreas específicas sendo chamadas por seus nomes, enquanto eram conhecidas coletivamente como Israel. As tribos são retratadas guerreando com os povos locais e, ocasionalmente, entre si, sob lideranças que surgiram em diferentes tribos e agiram por alguns ou todos os agrupamentos tribais” (Alan R. Millard, “Amorites and Israelites: Invisible Invaders—Modern Expectations and Ancient Reality”, em The Future of Biblical Archaeology: Reassessing Methodologies and Assumptions, ed. James K. Hoffmeier e Alan R. Millard [Grand Rapids: Baker, 2004], p. 153).

[ii] “Na história que se desenrola de Deuteronômio a Samuel, o ‘descanso’ esperado é adiado até as vitórias maiores de Davi, que subjuga os filisteus e toma Jerusalém (2Sm 7.1)” ( J. Gordon McConville, God and Earthly Power: An Old Testament Political Theology, Genesis–Kings, LHBOTS 454 [Londres: T&T Clark, 2006], p. 105).

[iii] Veja Patrick D. Miller, “The Story of the First Commandment: Joshua”, em Covenant or Context: Essays in Honour of E. W. Nicholson, ed. A. D. H. Mayes e Robert B. Salters (Oxford: Oxford University Press, 2003), p. 80-90.

[iv] Veja Georg Braulik, “Zur deuteronomistichen Konzeption von Freiheit und Frieden”, em Studien zur Theologie des Deuteronomiums, ed. Georg Braulik, SBAB 2 (Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1988), p. 219-30.

[v] O conceito deuteronômico de descanso é concebido especialmente em termos espaciais e nacionais, especificamente como a ausência de oposição militar adquirida por Deus dentro de Canaã (Dt 3.20; 12.9-10; 25.19). O conceito sacerdotal é mapeado especialmente com tempo e disposição espiritual (a confiança na provisão divina evita a necessidade de esforço humano por um dia a cada sete). Os dois conceitos expressam uma dependência comum de Yahweh para prover as bênçãos importantes da aliança, mas isso não significa que eles sejam teologicamente equivalentes.

[vi] Assim também Ronald L. Hubbard, Joshua, NIVAC (Grand Rapids: Zondervan, 2009), p. 86: “estabelecer-se finalmente em paz e segurança — estar, enfim, serenamente ‘em casa’ de verdade — depois de anos de migração, lutas e guerras”.

[vii] Patrick D. Miller, “The Gift of God: The Deuteronomic Theology of the Land”, Interpretation 23, n. 4 (1969): 461.

[viii] McConville, God and Earthly Power, p. 113ss., vê a conquista como um “penhor” do comando dado à humanidade na criação para subjugar a terra à luz de Josué 18.1, mas não confunde isso com o descanso escatológico ou com a obediência necessária a ele.

[ix] Veja especialmente Jon Laansma, “I Will Give You Rest”: The “Rest” Motif in the New Testament with Special Reference to Mt 11 and Heb 3–4, WUNT, 2a ser., 98 (Tübingen: Mohr Siebeck, 1997), e Daniel C. Timmer, Creation, Tabernacle, and Sabbath: The Sabbath Frame of Exodus 31.12–17; 35.1–3 in Exegetical and Theological Perspective, FRLANT 227 (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009). Observe, por contraste, a conexão entre repouso na terra e a soteriologia proposta por J. Gary Millar, “Land”, em New Dictionary of Biblical Theology, ed. T. Desmond Alexander e Brian S. Rosner (Downers Grove: InterVarsity Press, 2000), p. 623-27.

[x] Veja Chris Alex Vlachos, “Law, Sin, and Death: An Edenic Triad? An Examination with Reference to 1 Corinthians 15.56”, JETS 47, n. 2 (2004): 277-98.

[xi] Sobre o lugar da aliança do Sinai, veja Cornelis P. Venema, “The Mosaic Covenant: A ‘Republication’ of the Covenant of Works?”, MAJT 21 (2010): 35-101

[xii] Graeme Goldsworthy, Gospel-Centered Hermeneutics: Foundations and Principles of Evangelical Biblical Interpretation (Downers Grove: IVP Academic, 2006), p. 255.

[xiii] Geerhardus Vos, “The Structure of the Pauline Eschatology”, Princeton Theological Review 27, n. 3 (1929): 439.


Autor: Miles V. Van Pelt

Dr. Miles V. Van Pelt é Professor Alan Hayes Belcher de Antigo Testamento e Línguas Bíblicas e diretor do Instituto de Verão para Línguas Bíblicas no Seminário Teológico Reformado em Jackson, Mississippi. Ele é autor de vários livros, incluindo Basics of Biblical Hebrew e Judges: A 12-Week Study.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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